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 por Jorge Forbes

Flipídicas

notas soltas sobre a Flip-2011

 

I. Antes de começar

  – Uma amiga, jornalista muito conhecida e companhia assídua de todas as Flips, me avisa: -“Esse ano não vou não, achei a programação muito chata, mal conheço e não li quase nenhum dos autores convidados”. Tentei refutar sem êxito. Para mim a Flip é como o hipismo, vale o conjunto: cavalo e cavaleiro. Aquela pontesinha de vai-e-vem entre as palestras e a praça da Matriz, se transforma na ponte dos suspiros de conversas letradas. A Flip consegue o milagre de transformar um povo onde todo mundo é técnico de futebol, em crítico de literatura. E quem diz que leitura é para poucos, erra na redonda. Por tudo isso, e mais, vou à Flip, até se for para não gostar. Aprende-se muito quando se tenta explicar a discordância.

 – A Flip é como Ipanema, tem suas musas renováveis a cada ano. Neste, um (a) dos mais anunciados, é o médico Nicolelis. Seu livro é apresentado entre o científico e a ficção científica. Chama-se: “Muito além do nosso eu”. Bati o olho em sua biografia: nada de Sócrates, Platão, Aristóteles; ou Nietzsche, Heidegger, Sartre; ou mesmo Freud; enfim, essa turma que já disse alguma coisa sobre o eu. É mais além de tudo isso, vai ver. Pondé vai discutir com ele, imagino que possa ser interessante. Uma parte da imprensa continua fascinada com os gadgets científicos, como quando se ficava fascinado com o telefone celular.

 – Estou convidado para jantar com David Byrne. Será que deveria saber tudo sobre o Talking Heads? Too late, I presume. Ao menos leio seu “Diários de Bicicleta”. Gosto da sutileza do título. Ah, e comparto com ele a idéia que nada melhor para conhecer uma cidade que andando de bicicleta. Será que alguém consegue subir pedalando a Ministro Rocha Azevedo?

 – A Folha (6/7) publica a carta-convite padrão que Liz Calder envia aos convidados da Flip. Bela e simpática carta. Pena que o jornal se prenda a poucas linhas dessa longa e explicativa carta, para, em título garrafal, dizer que ela fala de praias e clima carnavalesco. Lembro-me de Lacan que insistia que ser sério é fazer série e não … ser chato.

 – Paraty é muito, mas muito longe. Pobres autores! Terão que nos compensar essas curvas insuportáveis da rodovia Oswaldo Cruz, e as cinco horas de viagem, com formidáveis debates. Vamos lá.

 


II. Abertura.

  – Conferência de abertura. A ovação com a entrada em cena de Antônio Cândido acompanhado do amigo José Miguel Wisnik encobriu a fala do curador Manuel da Costa Pinto. Antônio Cândido, como sempre, completamente coerente com Antônio Cândido, sem um fio fora do lugar e com os “L”s completamente pronunciados, preferiu a linha da memória afetiva. Passeamos com ele ao encontro de um Oswald de Andrade múltiplo, verdadeira força da natureza. Resumiu Oswald em três pontos: percepção rápida, expressão sintética e imagem fulgurante.

Já Zé Miguel preferiu um pouco mais de academia, talvez por falar para seu professor ali ao lado, e comentou a antropofagia, mais do lado da pós-modernidade, no sentido de imbricações horizontais das diferenças, que do batido confronto: Índio comeu bispo Sardinha.

 – Show de abertura. Momento maior, mágico, emocionante, inteligente, sensível. José Miguel Wisnik, na primeira parte, com seu grupo, mostrou a maravilha da letra Oswaldiana em todos os tons. Aí, para ficar tudo claro – da importância de Oswald e do que é Brasil – entra a magnífica Elza Soares, a cantora do milênio, pela BBC, sabiam? Entra apoiada por dois senhores, como convém a uma grande dama recém-operada da coluna. Parecia uma Elizabeth Taylor em versão negra, envolta em sua estola branca, contrastante com seu cabelo e sua pele. Sua voz incomparável, seu canto da terra associado à sofisticação intelectual e musical de Wisnik, fizeram com que todas as músicas, repito, todas, fossem aplaudidas de pé. Não houve bis. Não havia como repetir.

 – Meia-noite termina o show. As pessoas saem renovadas de alegria inteligente. É hora de dormir, mas como dormir sobre esse sonho?

  


  III. Primeiro Dia

 – Meu pai, que era médico neurologista e grande erudito – rara conjunção nos dias de hoje – defendia a ideia de que um dos malefícios da segunda grande guerra foi o de americanizar os estudos médicos. Isso quer dizer, todos os estudos ditos humanísticos foram substituídos por pragmatismos tecnológicos, do gênero: – “Vamos pedir seus exames e aí saberemos o que você tem”. Fomos da clínica do relato para a clínica do objeto.

Pensei nele, enquanto ouvia o colega Nicolelis. Que simplicidade de reflexão, a do doutor da Duke University! Como tudo fica bom e bem quando a complexidade humana se resume à exclusiva vertente biológica. E como a torcida fica feliz, a se ver liberada de sua própria humanidade, ouvindo a proposta de construir algo chamado de além do humano realizado por assumidos milagres – my God! – além dos deuses.  

 – Luiz Felipe Pondé, de quem conheço a trajetória, foi interlocutor de maior altura, o que pode ter deixado alguns extraviados nas nuvens. Fazendo rodar seu pensamento como um tornado em direção ao olho, acabou por concluir: eugenia!

Não temos que temer os fanáticos religiosos, esses são facilmente detectáveis, pior é o fanatismo cientificista liberado dos pecados da religião e de qualquer dúvida.

 – Aprende-se na semiótica a diferença do discurso da ciência, aquele que tem o poder de fazer saber, com o discurso da propaganda, aquele que tem o poder de fazer querer. Um não anda sem o outro, pois ciência sem divulgação é ciência oculta. Agora, quando se exagera no discurso da propaganda, em detrimento do científico, pode se ver confundido com um vendedor das Casas Bahia: a felicidade em prestações compatíveis ao bolso de todo mundo…

 – O lógico Newton da Costa um dia desenhou uma figura de três lados no quadro negro e disse aos alunos da pós-graduação: – “Dado esse círculo…”. Rapidamente, um aluno esperto o interrompeu delicadamente para lhe dizer: – “Professor, isso é um triângulo!”. Newton explicou ao moço que ele estava em lugar errado por não saber diferenciar uma figura representativa, do suposto objeto representado. Sempre me lembro dele quando alguém projeta uma imagem de um cérebro e diz – “Isso é um cérebro”, e mais ainda quando, à imagem, acrescenta um ruído e afirma: “Esse é o barulho dos neurônios quando pensam”. Uau!

 – O caribenho Caryl Phillips declara: -“Precisa-se ter uma certa arrogância para escrever”. Bien trouvé.

 – A mesa de Caryl Phillips com Kamila Shamsie – um caribenho, outra paquistanesa – chamava-se “Ficções da Diáspora”. Por que? Porque escrevem em inglês, sem serem ingleses ou americanos? A língua é de um país, ou o país é da língua, como diria o bardo de Santo Amaro?

– Kamila Shamsie começou com feministidades do gênero: é importante ver que mulheres escrevem. E isso lá é surpresa?

– Entre a brasileira acadêmica, Marcia Camargos, e o argentino não só acadêmico, Gonzalo Aguilar, que falaram sobre o nascimento do modernismo no Brasil, voto no argentino. Aliás, só se percebeu o país de origem de Aguilar, quando ao ter que substituir seu microfone preso á orelha, por um microfone de mão, declarou humildemente: -“Sai Madona, entra Frank Sinatra”.

 – Gonzalo Aguilar foi muito feliz ao projetar fotografias do Abaporu em contraste com as do pensador de Rodin. No primeiro, os pés em destaque, e ligados à terra; no segundo, a cabeça, e a escultura solta no ar. Tarsila inverte a hierarquia da cabeça. Ressalta a plasticidade do corpo brasileiro e a mobilidade do pé. Por onde começa o corpo, pelo pé ou pela cabeça? As pedras desalinhadas das ruas de Paraty não deixam dúvida. Nem Lacan, que privilegiava para onde apontam os pés.

 – O conquistador perde a vergonha quando se depara com as índias que não cobrem a vergonha.

 – O presente é quem inventa o passado. Nesse sentido, é claro que a história é sempre ao depois, como descobriu Freud (ou o Freuderico).

 – Como chovia nessa quinta-feira, em Paraty, e que frio! Meu quarto de hotel não tem ar quente. Vejo a foto nos jornais dos pinguins do zoológico de Porto Alegre, com aparelhos de ar quente em seus habitats. Que inveja! Como são bem tratados, eles não sobreviveriam por aqui.

  


 IV. Segundo Dia – sexta-feira 8/7/2011

 – Os melhores filmes são os que você não viu, os melhores livros, os que você não leu. Mas de tanto ouvir falar, você acaba por acreditar tê-los visto e lido, podendo até discuti-los. Foi assim, para mim, a mesa do português encantador, com a musa argentina que não decolou. Ao chegar ao café da Flip, as pessoas saiam da tenda dos autores, com uma pergunta só: – “Você também chorou?”. Parece que aquela emoção contida provocada pelas intervenções de valter hugo mãe – em minúsculas, como ele quer – explodiu quando resolveu ler uma carta aos brasileiros, em resposta ao que achava desse país. A bonita argentina, de sobrenome impronunciável, Pola Oloixarac, ficou com menos spots, explicando que queria ser vista como escritora, não como bela. Não conseguiu muito, parece.

 – Alguns acham que dizer “francês ríspido” é pleonasmo. Não é não, ao menos se compararmos a simpatia de Emmanuel Carrère com o seu oposto, em Claude Lanzmann, dois produtos do mesmo hexágono. Lanzmann caprichou. Fez o pouco hábil debatedor, – ok, ele falou demais e muito de si mesmo, mas é bem preparado – Márcio Seligmann-Silva, passar por uma terrível saia justa. – “Fale do meu livro, batia o autor com punho fechado sobre um exemplar, ou vou-me embora”. E Márcio tentou, mas era sempre interpretado como não tivesse lido, ou como se estivesse levianamente interessado nas mulheres de Lanzmann, em especial a Beauvoir. Foi duro de ver, ai.

 – Lanzmann tem uma história rara e interessante, sem dúvida, a questão é o lugar que dá para o futuro. Não vi. Quando se fica congelado no passado, se perde a dúvida do amanhã. O presente e as pessoas não interessam mais, só as lembranças.

 – Diferente de Lanzmann é o entusiasmo de seu conterrâneo Carrère, que insistia que ao vasculhar a realidade podemos nos assustar e daí buscar a ficção que acalma. Ele fazia contraponto com o húngaro Péter Esterházy, que na ficção encontrou a dura realidade, no caso, a de um pai espião descoberto por sua caligrafia pessoal nos documentos policiais. É um jogo sem vencedor, esse: do equívoco ao real, do real ao equívoco. E tanto mais quando o tempero das relações é a família, razão do título da mesa: “Laços de família”. Não foi por acaso que Freud escreveu um famoso artigo: “Romances Familiares”. Existem outros?

 – Ignácio Loyola Brandão e Contardo Caligaris tiveram a dura empreitada de substituírem a mesa prevista para Antonio Tabucchi, que se recusou a vir pela posição brasileira no caso Battisti. A grande ausência sombreou o esforço do debate que não passou de morno, em uma sala fria.

 – A senhora entrou na tenda com tempo de achar um bom lugar. Decepcionou-se ao ver todas as cadeiras reservadas – assim entendeu – com papeizinhos brancos. Foi-lhe explicado que não eram reservas, mas papéis de fazer pergunta. E ela, então, fez uma: – “Posso sentar em cima da pergunta?”.

 


  V. Terceiro e Quarto dia. Final.

  – Joe Sacco, coordenado pelo bom Alexandre Fernandez, elevou os quadrinhos a um nível bem acima do qual normalmente são vistos. Mais uma vez a guerra era a questão. Como representá-la? Ele deixa clara a diferença dos quadrinhos com a fotografia. Há uma diferença de tempo: do instantâneo, ao desenho da memória. Ele está sempre comprometido como repórter, chega mesmo, muitas vezes, a se auto desenhar na história. E não é sempre assim? Alguém acredita em notícia pura, imparcial e desinteressada? Aquela que só teria rabo preso com o leitor acaba por confessar o rabo.

 – Dizia da constância temática, nessa Flip, de como representar a morte, a guerra, o limite. Foi assim, como acabo de escrever, com Sacco, e também com Lanzmann, com Pondé, com Nicolelis, com Coelho, com Silvestre, com Esteházy, com Ellroy, sem ser exaustivo. Sinal dos tempos? Provavelmente sim, não de tempos de violência, mas de tempos desbussolados pós-modernos, no qual o padrão morte foi deslocado para novos lugares a ainda serem legitimados.

 – Edney Silvestre se esgrimiu com Teixeira Coelho. Duas posições antagônicas: Silvestre, nada quer esquecer-se dos tempos difíceis da ditadura; Coelho, por sua vez, prefere entocá-los. Marcelo Ferroni, na mesma mesa, diferente dos dois, faz com que a ficção revele o real e não o contrário. Muito interessante esse terceiro caminho, para aquele debate.

 – João Ubaldo Ribeiro sempre me parece como o Caymmi das letras. A voz rouca, o sotaque, a folgosa prosa. Rodrigo Lacerda foi interlocutor à altura. Pouco a pouco, ficamos sabendo da intimidade dos personagens, sempre cobertos com um véu de pudor faceiro, para melhor atrair. Muitos aplausos àquele que se recusou a vir antes à Flip, para não engrossar a rabada dos etcs. – “Não quero ser estrela, só não quero ir na rabada dos etcs”.

 – James Ellroy desconcertou seu mediador. Ellroy não tem média. Desde o começo, em sua leitura dramática nos pés de seus dois metros e ampla camisa de manga larga, com coqueiros tropicais, mostrou, não explicou. Menino que perde a mãe e fica sem explicação, mais impacta que ata. E, curiosamente, cheio de religião para rezar. Marcante.

 – Não fiquei para o final antropofágico do Zé Celso. Anunciava-se como só para maiores de 18 anos, e com convite à nudez dos autores. Curiosa estética. Un peu déjà vu.

 – Preferi o David Byrne da mesa de jantar de sábado, que o da mesa da palestra do domingo. Na mesa de jantar a conversa rolou solta, em roda livre de bicicleta, muito mais que na manhã seguinte, onde apareceu uma conhecida e burocrática conversa, com o concurso do urbanista Eduardo Vasconcellos. Queremos bicicleta hoje, agora, gritou a platéia. Os burocratas se apavoram, querem resolver muita coisa antes. Ouçam os Talking Heads.

 – Fim de festa, momento melancólico. Embora tão recente, já é tudo memória. Os rostos, os lugares, as conversas, os encontros, os disparates. O sol apareceu para dar até-logo. Fomos.

(Relatos publicados originalmente no site Vida Boa)