/A Insustentável Violência do Ser Pós-Moderno*

Jorge Forbes

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Uma brasileira igualzinha a você: loira, bonita, tem pai e mãe, casa, saúde e educação. Uma pessoa que preenche todos os requisitos da receita de como evitar filhos-problema não pode cometer uma aberração. Não é isso que temos lido todas as vezes que nos chocamos com uma desgraça humana? Imediatamente surgem os suspirantes moralistas de plantão: – Ah, se não lhe tivesse faltado o apoio de uma família bem constituída; – Ah, se não fosse a penúria e a fome; – Ah, se não tivesse se afastado dos bons hábitos, dos horários, das refeições familiares, da reza. Para esses, tudo se resolve na aplicação dos bons princípios e se algo falha é porque a cartilha não foi bem aplicada: ou os pais são viciados – estupradores, por exemplo – ou a filha é louca constitucionalmente, ou por droga.

Aí, aparece Suzane: uma brasileira igualzinha a você, que declara ter participado do assassinato de seu pai e de sua mãe. Como é possível a uma filha de um engenheiro e de uma psiquiatra tal absurdo? É necessário que se encontre uma razão para julgar o crime, certo, mas, especialmente para tranqüilizar a sociedade dizendo que sua receita tradicional de educação, se bem aplicada por gente normal, em gente normal, não falha. Se suzanes não forem catalogadas em alguma patologia evidente que as difiram claramente de “gente normal”, de “gente como a gente”, como estarmos certos de que não poderíamos fazer o mesmo; de que nossos filhos não poderiam fazer o mesmo; de que nossos pais também poderiam ser atrozes? O caso Suzane interpretou nossa sociedade, daí o fenomenal interesse despertado. Por vezes a ânsia de encontrar uma explicação é tão grande que se cai no ridículo, sem perceber. Foi o caso daquela revista semanal que poucas semanas após o crime estampou em sua capa algo assim: – Descobrimos porque Suzane matou seus pais: o pai era um rígido engenheiro alemão e a mãe, uma psiquiatra que se ausentava muito da casa. Conclusão: pais alemães rígidos casados com psiquiatras trabalhadoras têm filhas assassinas.

A sociedade precisa de uma causa, de uma resposta ao porquê. A compreensão diminui a angústia social e dá a impressão de poder controlar as ações humanas. Se não foram os pais, foi o namorado; se não foi ele, foi uma loucura que passou despercebida: uma frieza de ânimo, uma esquizofrenia simples, uma perversão e se não foi nada disso, então vai ver que foram as drogas. A única certeza é que alguma coisa foi, pois isso não é normal, concordam todos.

Nossas certezas, nossas respostas habituais estão sendo questionadas, envelheceram e se mostram incapazes de tratar desse caso e de outros como o PCC que têm em comum o inusitado, o fora de lugar, a surpresa.
O julgamento de Suzane faz o tribunal do júri entrar na série dos circos que nos visitam, como o da China e o do Soleil, com a diferença que atrai a muito mais espectadores, mas não diverte e nem faz rir. As instituições jurídicas, que ampararam e deram alento a uma sociedade acuada pela ditadura há trinta anos atrás, hoje mostram a necessidade urgente de reforma, de se reorientarem em uma nova era, a de um novo sujeito da globalização diferente ao do mundo passado, da sociedade industrial.

O mesmo podemos dizer da psiquiatria e da psicanálise. Vemos na primeira, na psiquiatria, um movimento de despertar uma neo-tipologia lombrosiana, que agora se justificaria pelos avanços da ciência que possibilitariam refinar o antigo conhecimento através dos traços anatômicos e dos comportamentos, pelas pesquisas genéticas de um gen do criminoso. A prosseguir por aí, preparemo-nos para os berçários-presídio.

Na psicanálise, é de pouca valia a insistência de restringir a compreensão dos afetos na chave edípica: Pai, Mãe, Filho. Um ama o outro e detesta o terceiro. O Complexo de Édipo foi um magnífico recurso que Freud nos deu para entender a estruturação psíquica em uma sociedade pai-orientada, de 1900. Funcionou como um software ligando o homem ao mundo, com o qual é de sua natureza viver em crise; funcionou tão bem que acreditamos que só podia ser assim: que todo adolescente tem que ter crise; que todo filho tem que se revoltar contra o pai; que toda filha tem que desprezar sua mãe. Muito já se falou, com parco resultado, do triângulo Susane, pai e mãe, em múltiplas variações. Pode-se explicar muito com Freud, mas justificar? Deveríamos insistir: se Freud explica, não justifica. Ser freudiano hoje nos obriga ir além do Édipo e imaginar como poderá se constituir o novo laço social – e ele já existe – em uma sociedade que multiplicou os pais, ou seja, os alvos, as possibilidades. Não vivemos mais em mundo padronizado, onde a pergunta era sobre o que me impedia alcançar o que era de mim esperado. Hoje, a questão mudou do que me amarrava no passado para o que eu quero do meu futuro. O futuro é uma invenção e não uma previsão. Temos novas soluções e novos problemas.

Na lista dos novos problemas podemos realçar os crimes inusitados, ao lado do fracasso escolar, da epidemia de depressão, do crescimento vertiginoso das toxicofilias.

Vamos nos restringir a analisar os crimes inusitados, como já dito, crimes fora do lugar, que nos surpreendem, que não se entende. Ao lado de Suzane podemos colocar o estudante de medicina que entra no cinema e atira em uma platéia anônima; também o moço que, saindo abraçado com sua namorada de um restaurante, tira do bolso um soco-inglês e esmurra o rosto do outro moço que entrava também com sua namorada. Eles não se conheciam, não havia grupo, nem droga, nem platéia. Ainda temos o aluno que recentemente pos fogo no seu colégio na festa junina. Não em uma cortina, ou numa lata de lixo, não. Pos fogo no colégio inteiro, o colégio não existe mais. E há também aquele que conversando com sua namorada pelo computador em uma noite de sábado, enfastiado, focou a câmera na janela de seu quarto, escreveu “siga-me”, e se jogou do décimo sétimo andar.

Em todos os casos, quando não há morte do autor, podemos detectar três tempos: tudo bem – atrocidade – tudo bem. Vai-se da imprevisão, para o fenômeno e deste para a ignorância. Não há nenhum porque que justifique o assassinato dos pais; o tiroteio no cinema; o soco inglês; o incêndio do colégio; o se jogar pela janela. O fato de não existir um só porque – pode haver muitos – não deve diminuir em nada a responsabilidade subjetiva, todo o contrário. É notável que na maioria dos casos o autor saiba tão pouco do que fez quanto qualquer outra pessoa e não devemos tampar esse aspecto com o rótulo pronto de psicopatia.

Será que estamos prontos para viver uma sociedade pós-moderna onde o pensamento se confunde com a ação e não lhe é anterior? Será que suportaremos o fato que nem tudo tem justificativa, a começar de coisas essenciais como as escolhas amorosas, em todos os seus aspectos?

Nossa inércia racionalista é grande e sofre com a necessidade de se mexer em suas velhas verdades. Mas não temos escapatória, há um novo mundo que exige novas formas de apreensão e de legitimação. Teremos que separar ética de moral. Teremos que responsabilizar a pessoa no acaso e na surpresa. Teremos que inventar e não se adequar. Teremos que saber que a minha liberdade não termina quando começa a do outro, mas, ao contrário, que minha liberdade começa com a liberdade do outro. É um longo programa, que toca todas as esferas da sociedade, por isso mesmo comecemos já, pois senão, surpreendentemente, um brasileiro igualzinho a você poderá ser um assassino.

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*Artigo publicado no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, domingo, 23 de julho de 2006, caderno ALIÁS.

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