/“Não tenho a menor idéia”

Através de uma brevíssima passagem clínica – a troca de duas frases em uma primeira consulta – o autor examina sete aspectos da segunda clínica de Lacan, que se relacionam ao tema “O analista e os semblantes”: o horror ao ato; o desapego do analista; o Real e os semblantes; da primeira à segunda clínica; o Real não é um resto do simbólico; clínica do sentido – clínica da conseqüência; o novo final da análise.

Conferência de Jorge Forbes apresentada no VIII CONGRESSO da EBP -ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE: “O ANALISTA E OS SEMBLANTES” – Florianópolis, 3 e 4 de abril de 2009

“NÃO TENHO A MENOR IDÉIA”. Sob esse título vou tentar responder a dois pedidos de articulação que li nas diversas manifestações prévias ao nosso Congresso. Uma, no seu título geral, “O ANALISTA E OS SEMBLANTES”, e, outra, que essa questão ressoasse, conversasse, com o atual curso de Jacques-Alain Miller – já em sua décima quarta aula: “COISAS DE FINESSE EM PSICANÁLISE”(1) . Vou fazê-lo, partindo do comentário de um gesto analítico, – gesto – da forma que desenvolvi em livro: “Da Palavra ao Gesto do Analista”(2) .

Um pequeno momento clínico

Há poucos meses, eu chegava, como todas as manhãs de segunda-feira, para o atendimento na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano, na Universidade de São Paulo.

A secretária, com evidente preocupação e urgência, vem ao meu encontro e diz: – “Doutor Forbes, a Dra Rita – que é a médica geneticista – pediu para o senhor atender um caso muito grave, imediatamente – se possível já – de um moço de 38 anos, que sofre de ataxia espinocerebelar; que está muito deprimido, a ponto de querer se matar; que não toma banho há uma semana; que rompeu o contato com toda a sua família; que perdeu o emprego e que, finalmente, foi abandonado por sua mulher há dois dias. Mora no centro de São Paulo, num apartamento pequeno, com parcas condições de sobrevivência”.

O que é que um psicanalista poderia fazer frente a tantos semblantes, bem fixados, de desgraça? Temi que fosse muito pouco. Para os menos familiarizados com as doenças de origem genética, esclareço que a ataxia espinocerebelar é uma moléstia de alta gravidade, na qual ocorre um depósito indevido do aminoácido glutamina nas células nervosas, causando, em conseqüência, progressiva paralisia dos membros superiores e inferiores, dos músculos estriados, levando em muitos casos à morte por paralisia dos músculos intercostais, necessários à respiração.

Perguntei o nome do moço e pedi para que o convidassem a entrar. A sala de atendimento fica no fundo de um corredor, o que me deu a possibilidade de acompanhar a chegada do paciente, desde o hall de entrada até o consultório. Vi um homem de aparência coerente com a idade relatada, caminhando apoiado em uma bengala, com muita dificuldade, mostrando pernas e braços já claramente lesionados e com uma expressão facial entre a tristeza e a indiferença.

Recebi-o na sala, sem mesmo ter coragem de usar o habitual: -”Como vai?”. Preferi uma dessas expressões fáticas, de menor significação, para cumprimentá-lo: -“Bom dia. E então?”

Eu estava sentado muito próximo a ele, provavelmente a uma distância de um metro e meio, em uma cadeira dessas de escritório, que têm rodas. Ao meu -“E então?”, ele contesta: “Doutor, será que o senhor tem alguma idéia, Doutor, do que é a cada manhã, ao acordar, entrever, aflito, a porta do banheiro do meu quarto, que não é muito distante – moro num apartamento pequeno – e aí, Doutor, pegar a bengala que dorme a meu lado, palpar com dificuldade o seu punho e ainda ali, deitado, ficar me perguntando se ainda serei capaz, naquele novo dia, de dar os passos necessários entre a minha cama e o banheiro? Doutor, o senhor tem uma idéia do que seja isso?”

Aproximei ainda mais minha cadeira. Ficamos cara a cara, e, nessa posição, lhe disse com firme clareza: -“Não tenho a menor idéia”. Os vinte segundos que se passaram antes de uma nova reação me pareceram vinte minutos, ou mesmo vinte horas. Fiquei em dúvida se ele me agrediria. Passado esse longo tempo de silêncio, ele me disse: “De fato, Doutor, o senhor não pode ter a menor idéia.” Foi um alívio, diria, para ambos. Para mim, ver que ele suportava uma posição que não fosse a tão esperada compaixão. Para ele, possivelmente, o alívio da pesada carga dos semblantes, dos papéis sociais que uma pessoa, nessa condição, carrega, em uma paradoxal demonstração de morte ambulante para poder sobreviver. Acrescentei: – “Mas o senhor pode me contar”.

Era só isso que queria destacar desse momento clínico, não sem antes dizer que as modificações daí decorrentes, na forma de gozo dessa pessoa, foram de importância a serem notadas por todos os vinte e dois colegas que participam desse trabalho semanal.

Teço agora alguns comentários sobre este gesto analítico, à luz do título desse congresso O ANALISTA E OS SEMBLANTES, em associação ao atual curso de Jacques-Alain Miller, como solicitado.

O horror ao ato

  1. Esse, para mim, foi um dos momentos em que mais claro ficou a referência, de Jacques Lacan, que o analista tem horror de seu ato. Tudo ali estava preparado para o acolhimento, a simpatia, a empatia, enfim, como referido, para a compaixão. Ao dizer “Não tenho a menor idéia”, que não foi uma frase planejada, manipulada, mas sim, uma expressão súbita, daquelas que se impõem, porque nenhuma outra poderia ali ser expressa, me ficou claro como o ofício do analista é assustador à moral vigente, especialmente, à judaico-cristã.
  2. A posição de desapego
    Na aula três(3) de seu curso, Jacques-Alain Miller se pergunta sobre a posição do analista: seria de frieza, de indiferença, de insensibilidade ou de fleuma? Acaba preferindo nomear de détachement. Essa palavra teria várias traduções possíveis em português. Fico com aquela proposta por nosso colega Alain Mouzat: desapego. Desapego, no sentido de não estar ligado, de não corresponder a nenhum dos semblantes de alta força social, e, por que não dizer, de alto valor de real. Continuando com Miller, um pouco mais para frente no seu curso, na aula 10(4) , lemos: há de se separar o real em tanto tal dos semblantes que têm valor de real.
  3. Real em tanto tal e semblantes que têm valor de real
    O real em tanto tal não tem sentido, logo, não tem significação. Ele está além do fantasma. Segundo Miller, na aula doze(5) , é o fantasma – para aqueles que ainda privilegiam essa referência – mas despido do seu enredo e do seu cenário, a saber, do simbólico e do imaginário. Para alcançá-lo, todos os valores de real têm que se equivaler. São todos verdades-mentirosas, termo que Miller recupera de Jacques Lacan(6) , no prefácio a seu Seminário XI, em inglês. Todas as verdades são mentirosas, da mesma forma que as estruturas clínicas clássicas – neurose, psicose e perversão – são mentiras, são formas distintas de mentir sobre o real em tanto tal. É o que, a meu ver, justifica uma clínica que leva às últimas consequências a expressão de Lacan: todo mundo é louco. “Todo mundo é louco – comenta Miller, em sua aula 4(7) – o que quer dizer também: o real mente a todo mundo; a verdade é mentirosa para todo mundo”. Prosseguindo, sobre a conseqüência clínica, na aula 5(8): “A prática da psicanálise muda, então, de acento. Trata-se de reconduzir a trama do destino do sujeito, da estrutura aos elementos primordiais fora de articulação, quer dizer, fora de sentido, e podemos concluir, uma vez que eles são absolutamente separados, absolutos: reconduzir o sujeito aos elementos absolutos de sua existência contingente”.
  4. Da Primeira à Segunda Clínica
    Debate-se em nosso meio, como se fora o novo superego dessa comunidade, que temos que tomar cuidado com a Segunda Clínica. Só poderíamos acedê-la depois de muito tempo passado a clinicar na Primeira. Penso que não é nenhum superego que vai resolver nossas dificuldades clínicas. Se concordamos, com Miller, que a Psicanálise está presente no zênite social, seria só mais um passo dizer que muitos que nos chegam, chegam transbordados de interpretações tipo Primeira Clínica. Esta pessoa que eu recebi no Genoma já veio com todo o aparato pronto das verdades mentirosas das formações significantes. A reação ao “Não tenho a menor idéia” convenceu-me, ainda mais, que a nossa clínica não é linear e por isso não vai da Primeira para a Segunda.
  5. O real não é um resto do simbólico
    É na aula onze(9) , que Jacques-Alain Miller chama a atenção que dizer que o real é o resto do simbólico é uma forma negativa de apreendê-lo, dando prioridade ao simbólico. O gozo, diz ele, está em todo lugar. – “A relação ao gozo não está condensada, não está comprimida, não está isolada em uma bolha; no fundo, ela não tem um limite”. Isso nos leva a pensar a clínica de uma maneira em que – “O objetivo da análise – em relação à positividade do gozo – é de diminuir o desprazer que este gozo causa e de aumentar o prazer do qual se pode ser susceptível. Ou seja, não se trata (mais) de raciocinar em termos de atravessamentos, mas em termos quantitativos, em termos de mais ou de menos, e não daquilo que falta, pois sempre o gozo é positivo”. Nossa clínica é da conseqüência, eu diria, de lembrar ao analisante que por trás da cena não há uma verdade, mas o obsceno, como alertou Lacan.
  6.  Clínica do sentido – Clínica da conseqüência
    Reservo uma palavra para esta distinção que trabalhei em 1999 e 2000 em um artigo chamado “Emprestando Conseqüência – quando Freud não explica” , de 1990, mais atual hoje que àquela época. Vejo vantagem em se diferenciar a posição do analista ao emprestar sentido, ao apontar a um sentido a mais; da posição de emprestar conseqüência, ao apontar a um sentido a menos. A posição de sujeito suposto saber é insuficiente para tocar o corpo do parlêtre. – “Não se conceitualiza mais o paciente como um sujeito – Miller em sua aula 12 -. Conceitualiza-se como um parlêtre … o que quer dizer que ele depende de um corpo”. Desenvolvemos com Hans Jonas, no Princípio Responsabilidade, a sustentação ética de uma posição coerente ao emprestar conseqüência que implica o corpo.
  7. E o final da análise?
    O final da análise, tomado em sua dupla acepção: de objetivo e término, me parece ser a questão mais interessante que se impõe hoje a uma clínica que diferencia o sinthoma de todas as suas expressões em semblantes. – “ O sinthoma, isso funciona, isso não é suscetível de travessia ou de revelação, é suscetível – não existe um termo em Lacan – Miller, ainda na aula 12 – então eu vou emprestar uma palavra do inglês, como herdamos o insight, suscetível de uma re-engineering, (reengenharia em português), de uma reconfiguração. É isto do que se trata de obter: uma reconfiguração através da qual não podemos dizer que o gozo ganhe sentido, não necessariamente, mas uma re-engineering que permite passar do desconforto à satisfação: a satisfação do parlêtre em questão”. O que quer dizer uma relação mais satisfatória, mudando o seu modo de gozar? Como diferenciar isto dos sucessos terapêuticos arrolados nas listas mais comezinhas do bem-estar? Como evitar uma moral rasteira de felicidade? Como escapar da armadilha do ser adequado e equilibrado? Sobre estas perguntas, termino esta pequena contribuição, esperando por melhor idéia.

Jorge Forbes – AME da EBP, da NLS, e da Associação Mundial de Psicanálise. Psiquiatra. Presidente do Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA) e diretor da Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP).
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Palavras-chave: segunda clínica, clínica do Real, do sentido à conseqüência.
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(1) MILLER, J.-A. L’ Orientation Lacanienne – Choses de finesse en psychanalyse, 2008-2009, Paris.
(2) FORBES, J. Da palavra ao gesto do analista, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
(3) MILLER, Choses de finesse en psychanalyse, 26 de novembro de 2008
(4) MILLER, Choses de finesse en psychanalyse, 4 de março de 2009.
(5) MILLER, Choses de finesse en psychanalyse, 18 de março de 2009.
(6) LACAN, J. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 567-569.
(7) MILLER, Choses de finesse en psychanalyse, 3 de dezembro de 2008.
(8) MILLER, Choses de finesse en psychanalyse, 10 de dezembro de 2008.
(9) MILLER, Choses de finesse en psychanalyse, 11 de março de 2009.