/A Psicanálise do Homem Desbussolado – As reações ao futuro e o seu tratamento

Jorge Forbes

“O viajante surpreendido pela noite pode cantar alto no escuro para negar seus próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não enxergará mais que um palmo adiante do nariz”.

I – STANDARDS E PRINCÍPIOS.

A prática lacaniana não tem standards, mas tem princípios. É o que afirma o tema central deste IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise.

Há controvérsias quanto ao que seja um princípio. Restrinjo-me à noção que prepondera: princípio é algo que engendra, que vem antes, a cabeça primeira. Na etimologia, tem a raiz de caput, cabeça.

Standard, por sua vez – um anglicismo para o que nomeamos, em português, padrão – é aquilo que se adquire da experiência.

O princípio antecede a experiência, enquanto o standard é dela fruto.

É fato que alguns standards podem, com sua consagração, acabar por ter função de princípio, no que antecedem e orientam novas experiências.

II – NOVO HOMEM. A MUDANÇA CONSEQÜENTE.

Parto do tema do Congresso para relatar o que me cabe desenvolver: “A Psicanálise do Homem Desbussolado – As reações ao futuro e o seu tratamento”.

Ao escolher esse título, chamo a atenção a uma transformação do laço social, hoje, que exige uma mudança na forma de incidência do ato analítico.

Mudança que só podemos pensar porque diferenciamos princípios de standards. Sem essa distinção, a psicanálise arriscaria deixar de existir, engessada em standards inaptos ao tratamento das novas formas do laço.

Com a expressão “homem desbussolado”, refiro-me ao habitante de uma nova era: globalização, pós-modernidade – ainda nenhum termo é suficientemente bom para nomeá-la, sempre causando polêmicas aqui – uma nova era, dizia, diferente da anterior por não ser prioritariamente “pai-orientada”.

O laço social na era industrial, na modernidade, era francamente orientado por um eixo vertical. As pessoas se juntavam “em nome de”, “em torno a”. A família, a empresa, a nação eram estruturas triangulares, ou piramidais, com um ápice ideal e aglutinador.

Tínhamos na família o pátrio poder; na empresa, a carreira de office-boy a diretor; na nação, o sentimento de Pátria.

O pai – que tinha as chaves do saber seguro, e dava a direção – ocupava, ele e seus representantes, o ápice da pirâmide. Lembramos, se ainda é necessário reforçar essa idéia, que, quando não sabíamos alguma coisa, éramos convidados a procurar no dicionário, chamado de quê? “Pai dos burros”.

Pois bem, na globalização, o saber consagrado, desde os iluministas, virou um genérico, do mesmo modo que fogões e geladeiras brancos são genéricos: uns não têm mais valor que outros. Um aperto de botão, um clique, um clique no rato, é tudo o que é necessário para acessar o saber.

O homem ficou desbussolado, sem o norte da mão do pai que, por ter o saber, lhe assegurava o caminho a seguir.

Freud teve a genialidade de propor uma estrutura capaz de esquadrinhar a experiência humana nesse mundo pai-orientado: o complexo de Édipo. Um standard freudiano, não um princípio.

Durante quase cem anos, fomos capazes de entender muita coisa das relações humanas a partir dessa estrutura, a tal ponto que vários chegaram a pensar que o Édipo fazia parte do homem, e que fora dele só haveria psicose.

Foi Jacques Lacan quem deu o alerta da intensidade de uma psicanálise além do Édipo. Uma psicanálise capaz de acolher um homem cujo problema não está mais nas amarras de seu passado, que o impedem de atingir o objetivo pretendido, motivo que levou Freud a chamar a psicanálise de cura da memória. Uma psicanálise para o homem que não sabe o que fazer, nem escolher, hoje, entre os vários futuros que lhe são possíveis: sem pai, sem norte, sem bússola.

III – QUEIXA, LIBERDADE, ANGÚSTIA.

Antes, as pessoas se queixavam por não conseguirem atingir os objetivos que perseguiam. Hoje, quase ao avesso, as pessoas se queixam ou nem se queixam ainda, mas se angustiam pelas múltiplas possibilidades que se oferecem.

Frente à responsabilidade do querer o que deseja, o homem recua. Ele reage ao futuro incerto, preferindo seguranças passadas. A época pós-moderna, que chegou a ser tão festejada, de um sonho de esperança transformou-se num pesadelo de angústia. A pós-modernidade, para Gilles Lipovetsky, foi um período de curta duração, substituído pela atual hipermodernidade, que ele conceitua.

Hipermodernidade quer dizer uma modernidade ilimitada, extensa a todos os domínios da experiência humana, ancorada em três fatores: na tecnologia, na individualidade e na economia.

Será que estamos fadados a sermos hipermodernos e acompanharmos passivamente as loucas, senão engraçadas, tentativas localizacionistas do id no mesencéfalo, prenúncio do próximo remédio, possivelmente o “id-ota”?

IV – TENDÊNCIA: SEREMOS HIPERMODERNOS?

Não acredito nesse destino, por duas razões: a primeira, porque embora ainda poucos, podemos notar uma série de pesquisadores estudando e promovendo novas conceituações deste laço social que exige, para a sua compreensão, uma nova topologia, a borromeana, na visão de Jacques Lacan.

Além do grupo que representamos, na psicanálise, acrescentaria pessoas além dela, como o filósofo francês Gilles Lipovetsky, recém citado; o sociólogo polonês Zygmunt Bauman; o arquiteto americano Ron Pompei; no Brasil, os juristas Tercio Sampaio Ferraz Junior e Miguel Reale Junior. Enfim, cito alguns nomes só para provocar em cada um a lembrança de outros, de diversas áreas. Todos, como diria, profissionais do incompleto, que de forma ocasional ou provocada, além das especificidades de suas disciplinas, em um verdadeiro movimento de desespecialização, contribuem reciprocamente, realizando o que Freud preconizava em sua “questão da análise leiga”, a saber: a compreensão, pelo paciente, dos fundamentos do tratamento a que se submete.

A segunda razão é a forte convicção de que a essência desejante e incompleta de saber – ou seja, inconsciente – do homem é um princípio que resistirá a todos os tipos de “bushadas” totalitárias.

V – ANGÚSTIA: UM PARÂMETRO.

Angústia é o tema do momento. “Sentir o que o sujeito pode suportar de angústia coloca vocês – analistas – o tempo inteiro à prova”, afirma Lacan na abertura de seu mais recente Seminário estabelecido por Jacques-Alain Miller. A angústia é um parâmetro, por excelência, da direção do tratamento.

Uma angústia do homem desbussolado vem sendo maltratada e acomodada em neo-religiosidades e em neo-cientificidades. Junto às neo-religiões colocaria os neo-universitários que consagram e standardizam os conceitos, em um renovado mercado de títulos, que lhes confere uma batina respeitável para acalmar a suposta e temida amoralidade conseqüente à queda do pai.

Quanto aos neo-cientistas, empírico-localizacionistas, eles não têm medo do ridículo, dada a avidez cúmplice de respostas – não importa que sejam absurdas – de uma população a quem se propagandeia que para tudo nessa vida tem remédio.

O psicanalista do homem desbussolado, para manter vivos os princípios da psicanálise lacaniana, deverá mudar sua música, ter novos standards.

Pensei em alguns exemplos:

  • Se ontem se analisava para se compreender mais, para ir mais fundo, hoje se dirige o tratamento ao limite do saber: é a necessidade da aposta, na precipitação do tempo;
  • Se ontem se fazia análise para obter uma ação garantida, livre de influências fantasiosas, hoje nenhuma ação é assegurada em um justo saber, toda ação é arriscada e inclui a responsabilidade do sujeito;
  • Se ontem a psicanálise falava em sofrimento psíquico, o que a levou a ser patrocinada por psicólogos que a reduziram a uma das disciplinas de seu currículo, hoje é necessário separá-la do campo da saúde mental, como tem insistido Jacques-Alain Miller;
  • Se ontem queríamos uma certeza verdadeira, hoje, na segunda clínica de Jacques Lacan, separamos certeza subjetiva de verdade lógica. Queremos uma certeza convencida;
  • Se ontem nos limitávamos em nossa práxis ao espaço cartesiano do consultório, hoje haverá psicanálise onde houver um analista, e ele é necessário nos mais diversos locais da experiência humana, muito além das instituições de saúde;

Existem várias opositores a este caminho, das estatísticas empíricas às metanálises, dos remédios salvadores – recentemente houve quem propusesse colocar antidepressivo junto com o flúor na água de São Paulo – aos livros de auto-ajuda. E daí? Nada que possa desentusiasmar aqueles que se beneficiaram de um trabalho analítico e foram formados no tratamento da angústia pela invenção responsável.

VI – CONCLUSÃO: PRINCÍPIOS ESTÁVEIS, STANDARDS INCOMPLETOS.

Não tenho certeza de que não tenhamos standards. Uma vez que os princípios estão além dos enunciados, sendo difícil positivá-los, caberia talvez entendermos que nossos enunciados são, afinal, standards com função de princípios. Porém, são standards ad hoc, usados a cada decisão analítica.

Assim como acontece com os princípios do direito, na concepção de Tercio Sampaio Ferraz Junior: na decisão jurídica, eles têm aplicação como topoi, lugares-comuns de uma retórica. Standards.

A principal diferença entre os standards ortodoxos e os nossos está na posição de quem os enuncia: de uma forma completa, ou de uma forma incompleta.

Frente à estabilidade dos nossos princípios, nossos standards clínicos serão leves, contraditórios, múltiplos, circunstanciais: sensíveis à singularidade de cada momento da sua aplicação. O analista “escolhe” quais usar a cada vez, a cada tempo. O analista pode querer o que deseja, não fica no inefável do que opera na clínica.

Concluo, com Freud, mostrando que o que estamos debatendo aqui, os princípios analíticos, não é novo. Em “Inibições, Sintomas e Angústia”, em 1926, assim aconselhava Sigmund Freud: ”Aceitemos humildemente o desprezo com que nos olham, sobranceiros, do ponto de observação de suas necessidades superiores. Mas visto que nós não podemos também abrir mão de nosso orgulho narcísico, ficaremos reconfortados com o pensamento de que tais ‘Manuais para a Vida’ ficam logo desatualizados, de que é precisamente nosso trabalho míope, tacanho e insignificante que os obriga a aparecer em novas edições, e de que até mesmo os mais atualizados deles nada mais são do que tentativas para encontrar um substituto para o antigo, útil e todo-suficiente catecismo da Igreja. Somente uma pesquisa paciente e perseverante, na qual tudo esteja subordinado à única exigência da certeza, poderá gradativamente ocasionar uma transformação. O viajante surpreendido pela noite pode cantar alto no escuro para negar seus próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não enxergará mais que um palmo adiante do nariz”.

Comandatuba, 2 de agosto de 2004

(Trabalho apresentado em plenária do IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, em 4 de agosto de 2004).