/Vergonha, Honra, Luxo – 2003

Elementos para uma clínica psicanalítica da pessoa e da civilização do século XXI.

Jorge Forbes

Há cem anos Freud inventava a psicanálise para tratar pessoas que viviam em uma sociedade onde a expressão da vida íntima e a satisfação pessoal, o gozo, eram proibidos, escondidos, silenciados. A diferença entre o público e o privado era evidente. A organização social era piramidal, estratificada, visava um ideal. Para atingi-lo era indispensável afastar obstáculos: entre outros o peso do passado, os traumas. A psicanálise era vista e designada como a “cura do passado”, a “cura da memória”.

Hoje, em 2003, a situação é inversa, a clínica não pode ser a mesma: ela deve ser a invenção do futuro. Hoje, o gozo se escancara, o privado é exposto na televisão, não há mais vida íntima, não há mais pudor, nada existe que marque a especificidade de um sujeito. A célebre afirmação de Warhol, sobre os dez minutos de fama universal, quer dizer que, em nossa época, qualquer pessoa vale outra, todas são intercambiáveis: tornamo-nos genéricos, a preferência é pelo mais barato. ‘Ó tempora, ó mores’

Vergonha – Não seria o caso de uma análise realçar em cada analisando o ponto fundamental da vergonha íntima, do pudor? Não aquela vergonha superegóica auxiliar na educação do em comportado: ‘que vergonha, menino!’ Não essa. Sim, a vergonha íntima de alguém para consigo próprio, aquela professada por Nietzsche: ‘vosso mau amor de vós mesmos vos faz, do isolamento, um cativeiro’. A vergonha que Lacan buscava obter como efeito de um tratamento: ‘Morrer de vergonha é um efeito raramente obtido… contudo é o único signo cuja genealogia se pode assegurar… é o único afeto da morte que a merece’.

Honra – Há mortes e mortes, ao menos duas: a biológica e a pela honra. Uma é sofrida e comum, outra, merecida e singular. Esses tempos de gozo explícito acabaram com a honra, transformando a vida em pura sobrevivência insossa. As conseqüências não tardaram: violência despropositada, toxicomanias, fracasso escolar, euforia depressiva, pânico. Se uma análise for capaz de atingir o ponto de vergonha íntima do analisando, em conseqüência acordará a honra que o explica e o luxo que o recobre.

Luxo – Ele já foi entendido como símbolo do poder, do caro, do exclusivo. Diferentemente, o luxo, na globalização, pode reorientar o sujeito, sendo capaz de se expressar no mundo da geléia geral, como ‘menos um’ (Lacan): a diferença radical. É o luxo visto por Voltaire como o aperfeiçoamento das ‘artes úteis’. O objeto do luxo escapa à relação com as demais coisas do mundo. É absoluto, não sendo universal. É singular, é um estabilizador do gozo desbussolado.

Lacan propôs três registros para interpretarmos a experiência humana: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Eles aqui se apresentam como a Vergonha, Real; a Honra, Simbólico; e o Luxo, Imaginário: são instrumentos para uma clínica psicanalítica da pessoa e da civilização do século XXI.

(texto de apresentação do seminário)

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