/Comentário do texto “A psiquiatria inglesa e a guerra”, de Jacques Lacan

“A psiquiatria inglesa e a guerra”, Jacques Lacan

 

Maria Helena Barbosa

 

Lacan publicou este artigo na revista Évolution Psyquiatrique, em 1947, onde conta de uma visita que fez a Londres, em setembro de 1945, logo após o anúncio da vitória das forças aliadas sobre os alemães, na Segunda Grande Guerra.

Depois de apresentar suas impressões sobre a diferença entre o “estado de espírito” francês e o inglês no pós-guerra, dedicará o artigo a sublinhar a ação realizada pela psiquiatria inglesa enquanto ocupando uma posição central na guerra.

Comenta então, que a França havia vivido a guerra em uma espécie de irrealidade coletiva, culminando num encantamento deletério ao final que levou-a a uma dissolução de seu status moral. Os fatores determinantes, identificados como fenômeno de grupo, foram que os franceses recorreram a refúgios imaginários e ao desconhecimento sistemático do mundo, as mesmas modalidades de defesa que o indivíduo utiliza na neurose contra sua angústia.

Anuncia ainda que esta condição sela um destino que se transmitiria por gerações e, evidentemente, nada alvissareiro para o futuro da França.

Por outro lado, a Inglaterra estaria, apesar da vitória, sobre uma depressão reativa em escala coletiva. Lacan registrou as marcas de uma destruição vertical, de uma cidade em ruínas e do esgotamento íntimo das forças criadoras que transparecia em seus interlocutores ingleses. Era um efeito tão geral quanto havia sido a coerção de todos aos serviços da guerra levada aos últimos estertores e que o levou a falar de heroísmo e de “uma relação verídica com o real”

Atesta que, mesmo se deparando com uma depressão geral, reconhecia que dela se destacava um fator tônico nos ingleses.

Quando a guerra eclodiu, a Inglaterra dispunha de um exército absolutamente insipiente para enfrentar as forças alemãs. Havia resistido obstinadamente ao recrutamento até as vésperas do conflito.

A partir do princípio da mobilização total das forças da nação, era necessário constituir, do nada, um exército em escala nacional.

Definiu-se a necessidade de realizar a criação sintética de um exército que levasse em conta a eficiência no emprego rigoroso de cada um dos indivíduos da nação.

Sob a pressão da urgência, o exército recorreu à psiquiatria para uma racionalização lógica, emprestada desta ciência, para efetivar esta empreitada.

Através do relato de uma série de visitas que fez a diferentes serviços, Lacan apresentará como o exército inglês fez uso da psiquiatria e suas técnicas, nas diversas funções constitutivas, investigativas, preventivas e interventivas, em tudo o que diga respeito à saúde mental da instituição militar, concluindo que, “a psiquiatria serviu para forjar o instrumento através do qual a Inglaterra ganhou a guerra” e “Inversamente a guerra transformou a psiquiatria na Inglaterra”.

Na autoridade assumida pela psiquiatria neste contexto, com a carga social da ampliação de seus deveres imposta pela sua função, Lacan vê correspondência do que seria uma definição autêntica da psiquiatria como ciência, “e que toda uma ordem de profilaxia social passou a parecer possível no futuro”.

Aponta que esta experiência é prenhe de um novo olhar a se abrir para o mundo. Um novo registro de determinação, um novo ponto de vista que passa a ser colocado a partir da questão de “como se determina a parte mobilizável dos efeitos psíquicos do grupo?”.

Ele constata a existência do “princípio de um tratamento grupal, fundamentado na experiência e na conscientização dos fatores necessários a um bom “espírito de grupo”.

É a existência da possibilidade do uso, em escala coletiva, das ciências psicológicas aplicadas a um problema social da civilização, sem, necessariamente, ter-se que concordar, em nada, com as escabrosas teorias do eugenismo.

Lacan frisa que seu assentimento não deve ser confundido com pseudo-realismo sempre à procura de uma degradação qualitativa.

Também revela que não é ingênuo ao fato de que o desenvolvimento dos meios de agir sobre o psiquismo dará ensejo a novos abusos do poder.

No entanto, a própria experiência que acabou de passar o faz reconhecer que, apesar de todas as exigências sobre a coletividade geradas pela situação de guerra na Inglaterra, manteve-se o princípio do respeito à objeção de consciência.

Analisa que “essa guerra demonstrou suficientemente que não é de uma enorme indocilidade dos indivíduos que virão os perigos do futuro humano. Está doravante claro que os sombrios poderes do supereu entram em coalizão com os mais frágeis abandonos da consciência, para levar os homens a uma morte aceita pela menos humanas das causas, e que nem tudo que parece sacrifício é heróico”.

E através da análise que Lacan fez das diversas intervenções, encontramos um denominador comum por onde ordená-las, a partir da política, da estratégia e da tática que foram empregadas na ação dos psiquiatras e os efeitos obtidos. Três metáforas de guerra.

Quanto à política, Lacan aponta que foi a política da psicanálise que orientou a ação.

Conta que isto se deveu ao grande número de psicanalistas entre os psiquiatras e à própria difusão dos conceitos e modos operatórios da psicanálise. Destaca entre eles, Bion e Rickmann, aos quais se dedicará a traçar os perfis e que, deixamos para que se leia no próprio artigo, linha a linha, tal a riqueza de detalhes que Lacan imprime para descrevê-los.

Nos exemplos, Lacan apresenta várias das estratégias utilizadas em intervenções precisas da clínica psicanalítica, do diagnóstico ao tratamento das questões. A idéia geral foi transpor para a escala coletiva o que o psicanalista encontra no individual.

As táticas empregadas partiram principalmente da psicologia de grupo de Kurt Lewin, do psicodrama de Moreno e de testes de seleção voltados para avaliação, principalmente, de aspectos de ordem psicológica e de detecção dos fatores de personalidade

Na sequência, apresentamos os quatro exemplos maiores da ação psiquiátrica, extraídos do artigo de Lacan e ordenados segundo problema, estratégia, tática e efeitos.

 

1- O RECRUTAMENTO

Problema: obter na tropa certa homogeneidade, tida como um fator essencial de seu moral.

Estratégia: trabalhar a partir da identificação horizontal. O déficit psíquico ou intelectual adquire um peso afetivo para qualquer indivíduo no interior de um grupo, em função do processo de identificação horizontal.

Lacan destaca e se contrapõe ao trabalho de Freud, Psicologia de grupo, que ressaltou a identidade vertical, ao líder, negligenciando, entretanto, este outro tipo de identificação.

Tática: o sistema adotado foi o Pulhems para testar a capacidade física e mental dos recrutas. Sujeitos afetados por déficts muito grandes foram isolados do resto do contingente, como dullards, broncos, ou personalidade debilóide.

Efeitos: a- agregados entre si, esses sujeitos, dullards, mostraram-se muito mais eficazes e foram utilizados nos trabalhos agrícolas, mantidos atrás da linha de frente;

b- as unidades de combate, depuradas de seus elementos inferiores, viram reduzir os fenômenos de choque e de neurose que provocam efeitos de enfraquecimento coletivo.

 

2- SOLDADOS QUE NÃO SE SUBMETIAM À DISCIPLINA

Problema: como transformar um agregado de irredutíveis em uma tropa em marcha?

Feita a seleção, descartados os dullards, alguns homens com dificuldade de se submeter a qualquer disciplina eram retirados da linha de frente e colocados como “aves raras”, dentro de um serviço dito de reeducação, num hospital militar.

Estratégia: Bion, tendo em vista que “o respeito pelo homem é a consciência de si mesmo, capaz de sustentar qualquer um com o que quer que esse respeito o comprometa”, propõe-se a encontrar no próprio impasse da situação a força viva da intervenção.

A tratar dos obstáculos que se opunham a essa tomada de consciência como sendo resistência ou desconhecimento sistemático, manobras dos indivíduos neuróticos e que aqui, seriam trabalhadas no nível do grupo.

Na situação prescrita, Bion teve mais meios de agir no grupo do que tem o psicanalista no indivíduo: por direito e como líder, fazia parte do grupo; serviu-se da inércia fingida do psicanalista; mantinha o grupo ao alcance de seu verbo.

Tática: organizar a situação de maneira a forçar o grupo a se conscientizar de suas dificuldades de existência de grupo.

Foram formados vários grupos cujo regulamento foi promulgado numa reunião inaugural com estes homens:

1-    cada grupo se definiria por seu objeto de ocupação;

2-    os grupos estariam entregues inteiramente às iniciativas dos homens: se agregariam a seu critério; poderia ser promovido um novo grupo conforme suas idéias. (sem duplo emprego com outro grupo); era permitido a todos voltar para o repouso do alojamento, a qualquer hora, somente avisando à supervisora-chefe.

3-    o exame do andamento do grupo seria objeto de uma reunião geral a acontecer todos os dias, por meia hora.

Efeitos: inicialmente a proposta causou uma oscilação dos homens, uma certa vertigem em relação aos hábitos reinantes até então. Em seguida iniciaram-se as primeiras formações frouxas testando a boa fé que havia sido exibida pelo médico com a palavra empenhada na proposta. Depois, os homens entraram no jogo constituindo vários grupos de trabalho.

O médico, reciprocamente, pegando-os pelo trabalho assim como eles o haviam pegado pela palavra, teve a oportunidade de denunciar, em seus próprios atos, a ineficácia de suas queixas reiteradas em relação ao funcionamento do exército.

Operou-se a cristalização de uma autocrítica no grupo marcada pelo aparecimento de maior ordem e limpeza nos alojamentos, pelos primeiros apelos à autoridade, pelos protestos coletivos contra os que tiravam o corpo fora.

Frente às dificuldades que surgiam, se era convocado a intervir, Bion devolvia a “bola”, com a paciência firme do psicanalista. Nada de punição, nada de substituição.

Também não faltou “estômago” a Bion frente às propostas aparentemente absurdas. Ele foi capaz de adivinhar o sentimento de inferioridade característico de todo homem afastado da honra do combate. Aceitou as propostas, passando por cima dos riscos de críticas e possíveis escândalos e com isso, reergueu nos homens o sentimento de sua dignidade.

Em poucas semanas o serviço de reeducação tinha se tornado a sede de um novo espírito: havia uma relação mais familiar, um espírito corporativo próprio que se impunha aos que chegavam. Isto era mantido pela ação constante do médico animador, com o sentimento das condições apropriadas à existência do grupo lhe servindo de pano de fundo.

 

 3- O RECRUTAMENTO DOS OFICIAIS

Problema: no início da guerra, o recrutamento empírico pela patente revelou-se absurdo. Não era possível extrair um oficial de qualquer suboficial, mesmo que excelente em sua patente. Também havia uma demanda enorme para um exército nacional a ser retirado do nada.

Estratégia: detecção dos fatores da personalidade que revelavam as atitudes fundamentais do sujeito quando se vê às voltas com coisas e com homens.

Não se apostou no valor viril expresso pela formação tradicional do oficial, reconhecendo nele a existência de fatores compensatórios frente às dificuldades e uma degradação em curso.

Tática: um aparato de seleção psicológica.

“A grande prova de seleção dos oficiais era a primeira e a maior: preliminar a qualquer instrução especial, realizava-se um estágio de três dias num centro em que os candidatos ficavam alojados e onde, em meio às relações familiares da vida em comum com os membros de seu júri, ofereciam-se ainda melhor à observação destes”.

Eram submetidos a uma série de exames com provas escritas e dinâmicas visando, sobre tudo, ressaltar a personalidade de cada um, especialmente o equilíbrio das relações com os outros que domina a disposição das próprias aptidões, a utilização disto no papel de líder e nas condições de combate.

Efeitos: esta ação revelou ser “aquela em que a iniciativa psiquiátrica mostrou seu mais brilhante resultado na Inglaterra”.

Lacan destacou a prova do grupo sem líder que também é de Bion, pela sua importância teórica. Nesta, constituem-se equipes de cerca de 10 sujeitos, nenhum com autoridade pré-estabelecida; uma tarefa é proposta para ser resolvida em colaboração. Menos que avaliar a capacidade de liderança, o observador dedica-se a notar em que medida cada um “sabia subordinar a preocupação de se fazer valer ao objetivo comum, perseguido pela equipe e no qual essa medida devia encontrar sua unidade”.

 

4 – RECLASSIFICAÇÃO DOS PRISIONEIROS DE GUERRA E DOS COMBATENTES NA VIDA CIVIL

Problema: “O problema essencial ali era o da redução das fantasias, que haviam assumido um papel preponderante no psiquismo dos sujeitos durante os anos de afastamento ou de reclusão”.

Estratégia: “a catarse era obtida nos sujeitos, inclusive e particularmente nos psicóticos, em lhes sendo permitido ab-reagir num papel… entregue a sua improvisação”.

Tática: os internos gozavam de inteira liberdade e o método de tratamento era inteiramente inspirado nos princípios do psicodrama de Moreno, uma terapêutica instaurada na América e deve ser considerada nas psicoterapias de grupo, de filiação psicanalítica.

Efeitos: permitiu a muitos sujeitos voltarem de fugas imaginárias e retomarem o caminho de seu emprego anterior, num período de seis semanas, em média.

Agora, passados mais de cinqüenta anos, reconhecemos a atualidade deste artigo cujos pressupostos sustentam, em muito, nossa ação junto a vários campos do laço social, numa sociedade onde o analista é cidadão e onde a demanda se faz ampliada para além das paredes do consultório.

É impossível não dizer da precisão com que Lacan utilizou o conceito de “saúde mental”, ou falou do futuro de um destino funesto, hoje o presente, da França, ou a clareza com que fala do que é uma verdadeira ciência em psiquiatria, ou como antecipa e responde algumas críticas, além da riqueza de detalhes que desfia, para nos incluir no contesto da visita ou, até mesmo, traçar o perfil de seus interlocutores.