/De Célio Garcia: De repente, a imagem

De repente, a imagem se tornou foco de debate; mas, ela é assim, shot dizem os de língua inglesa. Em campos distintos, afins ou distantes, várias cabeças pensantes passaram a se mostrar incomodadas com o destino da imagem. Passaram a debater sobre a imagem em termos de cinema, de informática, de psicanalise, de arte, de História memória e testemunho. Vamos aplaudir o magnífico ciclo de conferências montado no Palácio das Artes em Belo Horizonte, entre 15 e 25 de Março deste ano de 2004.

Desde sempre, houve – o que já sabemos – a idéia de que a imagem é sombra, aparência, nenhuma verdade é trazida por ela.

[Não dou as citações para poupar a mim e ao leitor erudição que já não autoriza, nem indica aonde podemos chegar. Uma menção aqui vai registrada pelo que encontrei em suas conferências, aparições em público, em programas de rádio em France Culture, seus artigos, e livro recente. Seu nome é Didi-Huberman].

Depois, veio o cristianismo e viu na figura (imagem) o infigurável, o invisível se dava a ver. O exemplo é a Anunciação e o anjo. Foi assim que ela ganhou sentido, a apropriação pelo pensamento cristão atribuiu a ela verdade e selou seu destino.

Vai daí que o século XX põe em movimento tudo isso. A Psicanálise e o Cinema coesos e inteiramente integrados ao século que os viu nascer, se implicaram grandemente em questões atinentes à imagem.

Com Lacan, nem vazia nem habitada, a imagem aponta para a ausência, para a castração. A imagem pode ser véu, mas o que ela esconde é a falta.

De qualquer maneira, a Psicanalise enfatizava o caráter de captação (imaginária), ilusão em que se cai quando permanecemos no registro da imagem. Não foi só a Psicanalise que pensou assim.

A ideologia foi tratada como uma alienação, produção do espírito (imaginário) a que estivéssemos apegados.

Era a época da hegemonia do estruturalismo. Acontece que nem sempre o estruturalismo funcionou bem com relação à imagem; ele funciona bem com outras coisas. Essa posição crítica, no entanto, punha abaixo a consolação pela e na imagem. Foi uma grande vantagem; limpou-se o terreno onde vamos poder pesquisar agora o que estará acontecendo.

Vemos atualmente mais um capítulo na história da imagem. Ela se permite abandonar o que foi sempre um peso para ela, o compromisso com a analogia. Ela é numérica. Do seu vazio, da sua ausência, do seu caráter de sombra, ilusão, ela faz sua origem. Cada signo, uma coisa. E temos conversado. O cinema, seu mais fiel companheiro, conhece diluição que torna difícil prever as conseqüências.

Vai mais longe, pois ela se permite hibridação (vídeo game, Internet, histórias em quadrinhos, animação), como já se disse no colóquio em Toulouse (2 a 4 de fevereiro de 2004) com o título “ A hibridação das imagens: emergência de um novo cinema”.

Novas formas de arte talvez surjam. Por enquanto, que venham os comentários adjuntos ao universo do vídeo game; o filme retoma o vídeo, ou vice-versa, o vídeo vem na seqüência do filme. Godard havia resumido: ela pode salvar a honra do real! Ela é shot que aqui sugere redenção, tal como foi resgatado por Benjamim. O punctum de Barthes quando ele descobria, numa imagem fotográfica, o que pode ferir, pro-ferir, com ou sem tons de profecia, o sentido visual a ser invocado.

A etapa atual propicia uma reflexão sobre o inimaginável, como no caso de quatro fotografias tiradas num forno crematório pelos comandos especiais do campo de extermínio nazista. Uma fonte visual pode ser utilizada pela disciplina histórica, já que ela toca o real.

Ao tocar o real, surge uma questão: como apresentá-lo? Uma apresentação de fotografias de Sebastião Salgado pode dar margem a um processo de denegação por parte de jovens brasileiros que teriam tudo a ver com as imagens mostradas. Elas fazem parte do cotidiano daqueles jovens.

Valeria talvez a pena mostrar que há sempre um fotógrafo, uma pose, como se diz.

Um recorte, como dizemos. O instante de ver inclui observar o que não nos é dado ver de imediato. Ao colocar a questão do fotógrafo, da pose, do recorte, o real toma relevo, até o ponto em que ele nos inclui. O real não se impõe pela demonstração pedagógica. Existe a pedagogia do horror, mas esta não é a nossa. A clínica psicanalítica (o Dr. Lacan) nos ensinou muito a esse respeito.

De qualquer maneira, não seria o acúmulo de imagens encadeadas pelo mesmo tema que teriam força de convencimento. Psicanálise e destino das imagens na pós-modernidade nos fazem pensar em séries heterogêneas, já que não submetidas ao jogo do preenchimento, permanecendo furadas, com hiatos, descompletadas.

A isso chamamos singularidade.

Um filme francês recente (“No passáran”) mostra como a imagem pode ser recuperada no século da imaginação desvairada. Na fronteira com a França os republicanos espanhóis que fugiam da sanha franquista se refugiaram na região fronteiriça.

Um jovem, já na idade adulta, se lembra da pequena cidade onde vivera enquanto criança. Mexendo nos papéis de um velho armário na casa dos avós encontra uma série de cartões postais. São fotografias da sua cidade, dos arredores, da região, cenas envolvendo acontecimentos da época em que não havia ainda cartões postais padronizados pela produção industrial, nem fotos nos jornais havia, nem televisão.

O fotógrafo, ao mesmo tempo vendedor de cartões postais num quiosque da cidadezinha, havia feito trabalho de arquivista, de museólogo.

O jovem constata que a série (numerada) dos cartões postais estava incompleta, faltavam algumas. Saiu ele a procura das imagens que faziam falta.

Para encontrá-las vai procurar os personagens mencionados por um, por outro, a medida que o inquérito prosseguia. Eram comunistas os espanhóis refugiados na zona fronteiriça, assim foram reunidos em campos pela França que os asilava. Quando chegaram os alemães ou quem os representava no governo de Vichy, colaborador dos nazistas, os espanhóis comunistas foram mandados para os campos de concentração na Áustria. Assim se fechava o cerco em torno das fotografias que faltavam. Elas são a própria verdade…lacunar como a série que elas constituem. Momentos de verdade.

Quando o tecido que as constitui se rasga, surge a estrutura agenciamento de fios.

Importante ressaltar a estrutura em termos de ruptura, quebra, surgimento do hiato entre duas imagens. As imagens na TV, ou em outros suportes oferecem um caso que pode nos interessar. De fato, a imagem parece se prestar ao jogo do preenchimento, desaparecendo o hiato entre uma imagem e outra, formando o que chamamos um estilo ou discurso romântico, história com principio, meio e fim. Godard é o cineasta que mostrou como fazer para restituir a quebra, a ruptura que permanece entre duas imagens, deixando para o espectador uma pergunta, por vezes um enigma. Parece que este tipo de cinema faz pensar, enquanto uma montagem com preenchimento escamoteia a quebra, a ruptura que estava lá; imagens encadeadas num enredo único impõem uma leitura, dispensam o pensamento ou a reflexão. Aliás, Godard não teria feito senão restituir à imagem o que ela tem de veracidade, de inesperado, por exemplo, numa obra de um grande artista. Porque o cinema mudo era tão mais interessante, astuto, inteligente? Talvez porque entre uma série e outra de cenas, ou após cada cena, era necessário interromper para intercalar uma legenda, um letreiro, um dialogo. Na verdade, somos surpreendidos quando olhamos uma imagem, nosso olhar esbarra em detalhes, somos pegos pelo que dela se dirige anos. Meu olhar é ferido pelo que chama minha atenção. Uma imagem nos olha desde sempre, antes mesmo que nosso olhar tenha sido dirigido para ela.

Que fez Freud com as imagens do sonho senão romper o encadeamento do relato trazido pelo sonhador? Contrariamente à tradição dos interpretes de sonhos que desde sempre tinham lido as imagens na seqüência que as encadeava, Freud se permitiu partir o sonho em vários pedaços, isolando por vezes as imagens dando a cada uma um valor que era próprio, singular. O que resultava era uma série heterogênea de elementos díspares. É possível que a possibilidade de interferirmos na seqüência de imagens com a TV digitalizada venha a introduzir variável para a qual não sabemos quais serão as conseqüências para o novo estatuto das imagens.