/De Leny Mrech: A Denúncia e a Profissão de Psicólogo

A profissão de psicólogo traz algumas vezes inesperadas surpresas. Algumas boas, outras ruins.

No dia 05 de setembro de 2004, na Seção Cotidiano, no Jornal Folha de São Paulo, li a matéria “Os Psicólogos reavaliam quebra de sigilo”, onde foi destacado que a decisão sobre o sigilo nos casos de violência, tratados pelos psicólogos, deixou de ser uma decisão pessoal e passou a ser um princípio ético.

Primeiramente, acho bastante estranha uma passagem pela ética que não seja uma decisão pessoal. Afinal é o sujeito que irá decidir se irá quebrar o sigilo ou não.

Em segundo lugar, espanta-me o rumo que as discussões sobre a violência tem tomado em relação ao Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região. Ele tem sido abordado como um problema simples e não como um problema complexo com múltiplas raízes.

Lembrei-me, então, de um texto de Affonso Romano de Sant´Anna Mentes Simples e Mentes Complexas, onde ele revela:

A mente simples é retilínea, plana.
A mente complexa é curva, elíptica.

Não será que na tentativa de acertar nós estejamos nos tornando pessoas com uma mente bastante simples? Uma mente retilínea e plana? Ao pensar que os psicólogos pela simples delação poderão resolver, de alguma maneira, os casos de violência?

Não será que os psicólogos na tentativa de acertar estão olhando o problema da violência sem considerar que estamos frente a algo curvo e elíptico?

Affonso Romano propiciou-me pensar mais alguns encaminhamentos nesta questão ao assinalar:

A mente simples acredita que somando dois com dois vai chegar ao quatro.
A mente complexa sabe que somando dois com três pode chegar a vários resultados, até mesmo, eventualmente, ao quatro.

Reduzir as implicações das ações de um sujeito violento, tentando resolvê-las a partir de um simples processo de punição e denúncia, me parece algo extremamente contraditório para uma profissão que lida com a questão das relações humanas.

Espera-se que um psicólogo, um psicanalista, um terapeuta de maneira geral possibilite uma acolhida para grande parte das ações humanas. Mesmo aquelas mais discutíveis e questionáveis. Afinal, em qual outro lugar além do consultório psicológico, psicanalítico e terapêutico o paciente poderá ser acolhido?

Além disso, esperar que as ações humanas não apresentem violência e nem ódio me parece algo extremamente contraditório. O desumano também faz parte das nossas ações. O consultório psicológico, psicanalítico e psicoterapêutico não é um confessionário de igreja. Não se trata de ganhar ou não o reino dos céus. Ali se trabalha com o que é mais profundo no ser humano: os descompassos entre o ideal e o real. É desumano considerar que os seres humanos sejam bonzinhos, sábios e bem articulados.

Para Freud a característica maior da humanidade sempre foi o seu vínculo com a pulsão de morte, isto é, a possibilidade da pessoa se auto-destruir e aos demais. A irracionalidade das guerras até hoje jamais negou este processo.

A pulsão de morte é uma constante em nossos dias e não alguma coisa difícil de ser encontrada. Por isso, mais uma vez concordo com as colocações de Affonso Romano de Sant´Anna quando ele destaca:

Essa guerra no Afeganistão está servindo para aclarar que vivemos o embate entre mentes simples e mentes complexas.

Não consigo imaginar como lidar com pacientes psicóticos que apresentam uma pulsão de morte bastante intensa, avisando-os, desde o início, que aquilo que eles disserem pode ser usado contra eles. A clínica psicológica, e principalmente a clínica psicanalítica, cobra uma ética. Não estamos ali simplesmente como juízes de nossos pacientes. Lidamos com o humano, mas também com o inumano, com o desumano. Não há como excluir este aspecto da humanidade.

A mente simples diz furiosa: olho por olho, dente por dente.
A mente complexa pondera com Gandhi, que dizendo olho por olho acabaremos todos cegos e desdentados.

O furor da retalhação. O aparente cuidado com os demais exclui algo bastante complexo: o paciente fica desguarnecido. Ele se torna um objeto em nossas mãos a ser denunciado, a ser criticado, a ser punido.

Não dá para pensar na questão da violência estabelecendo uma divisão entre aqueles que a fazem e aqueles que não a fazem. A situação é bem mais complexa do que isso.

O terrorista tem uma mente terrivelmente simples.
O militarista, não necessariamente o militar, tem uma mente armadamente simples.
O pacifista, até o pacifista, pode ter uma mente desarmadamente simples.

O pensamento de alguém violento é armadamente simples. Será que o nosso papel como psicólogos, psicanalistas e psicoterapeutas não é ajudá-lo a aprofundar os seus pensamentos?

Será que a natureza humana não é terrivelmente complexa?

Olhemos as galáxias. E os ventos. E os vulcões. E as tempestades. Não são simples, não marcham em linha reta.
O amor, ah!, o amor, não é, nunca foi uma coisa simples.

O amor e o ódio nunca foram coisas simples. Os psicólogos, psicanalistas e psicoterapeutas deveriam saber disso.

Leny Magalhães Mrech – Professora Associada da Faculdade de Educação da USP
CRP 6239
Diretora Secretaria do Instituto da Psicanálise Lacaniana

Psicanalista e socióloga