/Entrevista de Daniele Riva

Tarde de Santo Antonio, domingo, 13 de junho de 2004. O neurologista Daniele Riva fala ao Projeto Análise, em sua residência em São Paulo, dias antes de seu aguardado curso Psicanálise e Neurociência: os erros de Damásio e de Solms, promovido pelo Instituto de Psicanálise Lacaniana (IPLA), previsto para sexta feira, 18, e sábado, 19 de junho. Ariel Bogochvol, diretor do IPLA, participou.

Projeto Análise: Como surgiu o Curso “Psicanálise e Neurociência: os erros de Damásio e de Solms”? Daniele Riva: Eu li o artigo da Scientific American (“Freud returns”, assinado por Mark Solms, na edição de maio de 2004) e fiquei chocado. Informalmente, liguei para o Ariel (Bogochvol) e para o Jorge (Forbes), comentei o que li, falamos muito, desembocamos em uma proposta de uma conversa maior, com mais pessoas. Surgiu o curso.

PA: Quais são os erros de Damásio e Solms? DR: São especialmente as simplificações abusivas e o discurso triunfalista em relação às correntes de pensamento psicológicas e sociológicas não reducionistas. É o discurso do “civilizado” invadindo uma tribo de “selvagens”, postura semelhante àquela que os neopositivistas tiveram em relação às ciências humanas. Estas eram colocadas em posição inferior (referidas como protociências ou semi-ciências) por não adotarem o método das ciências naturais, particularmente da Física.
Um colega, neurofisiologista, argumenta nessa linha: “o psiquismo obviamente depende do Sistema Nervoso; a ciência que estuda o Sistema Nervoso é a neurofisiologia; portanto, a psicologia é neurofisiologia; e a sociologia, que não trata senão de Sistemas Nervosos interagindo, também é neurofisiologia”. É um programa imperialista do ponto de vista metodológico. Perigoso, porque sedutor e extremamente reducionista.

PA: Qual é a sua posição quanto à “Medicina baseada em evidências”? DR: A Medicina sempre foi baseada em evidências. Não é uma novidade.

PA: A idéia de evidência não buscaria o peso da ciência hard,da possibilidade de verdade que se pretende nas ciências naturais? DR: O objeto da Medicina é diferente daquele das ciências humanas. Salvo em Psiquiatria, o referente dos modelos médicos é o organismo. Portanto, a Medicina pode utilizar o tipo de teorização e de busca de evidências das ciências hard. Obviamente, isto não se aplica à Psiquiatria.

PA: Sua relação atual com a Psiquiatria e a Psicanálise, como está? DR: Conto-lhe minha trajetória. Sou neurologista e acabei estendendo meus interesses para a Neuropsicologia, a Psicologia e a Psiquiatria. Há 35 anos pratico a Neurologia e há 25 anos também a Psiquiatria Clínica. Há 30 anos via as coisas como o dr. Damásio, acreditando que a Psiquiatria deveria ser absorvida pela Neurologia. Dizia coisas das quais agora me penitencio, tais como “se a Neurologia e a Psiquiatria lidam, em última análise, com doenças do Sistema Nervoso Central, então a competência semiológica do profissional deveria ir do sinal de Babinski ao delírio”. Repeti esta frase, que me parecia óbvia, inúmeras vezes. Hoje ela me parece absolutamente estúpida e até arrogante. Nós não possuímos modelos do pensamento que permitam entender o delírio a nível neurológico ou neurofisiológico.
Existe um certo número de fenômenos psicológicos sobre os quais não temos o menor entendimento a nível neurobiológico (o problema do caráter fenomenal da consciência, os vários tipos de pensamento, os problemas ligados ao significado, etc). Infelizmente, não se tratam de questões marginas, mas de problemas centrais para qualquer projeto de redução da Psicologia à Neurobiologia. Por perceber a inexistência de modelos teóricos minimamente válidos para grandes áreas do psiquismo, fui me tornando crítico em relação a biologização da Psicologia.

PA: Como o pensamento do paciente entra na sua prática clínica? DR: Eu não faço psicoterapia. Relaciono-me com a pessoa com a Psicologia de senso comum, como todos os médicos, e lido com a doença assim como a vejo, com o instrumental da Medicina.

PA: Como está avançando esse pensamento de uma Biologia imperialista e o pensamento contrário, qualquer corrente que quebre o imperialismo? Como o senhor se posiciona aí? DR: O projeto desse imperialismo neurocientífico é radical. Basta ler os filósofos que o representam da forma mais clara, como Paul e Patricia Churchland, ambos da UCLA, onde, aliás, o dr. Damásio é professor adjunto. A aspiração desse grupo é pura e simplesmente banir da linguagem psicológica tudo o que é qualitativo no campo de consciência, transformando a psicologia do cotidiano numa trama de conceitos “científicos”. É um projeto radical.

PA: Eles têm chance de vencer, de ganhar muito espaço? DR: Eu acho que sim, pois o projeto é extremamente sedutor. O que mais me impressiona é a sedução que a imagem e o equipamento tecnológico exerce sobre as pessoas.

PA: No jovem psiquiatra, no jovem médico? DR: O jovem clínico não entenderia do que estou falando. A Medicina tem uma metodologia basicamente saudável. Um médico pode ser muito competente em sua prática clínica, como pesquisador e mesmo como professor, sem perceber a existência das questões epistemológicas e metodológicas envolvidas em suas atividades. Em Psiquiatria estes problemas saltam aos olhos, tornam-se evidentes. No entanto, para meu desânimo, toda reflexão metodológica ou epistemológica vem sendo varrida e, quando aparece, é desincentivada. Estamos sob o domínio do pensamento único, inspirado na “revolução” neo-kraepelineana. Os jovens psiquiatras não têm mais a consciência de estar num campo filosoficamente minado, coisa que não acontecia na geração do dr. Ariel.

PA: O senhor é pessimista. DR: Na realidade, não há motivos para otimismo. A Psiquiatria “finalmente” está voltando para a Medicina e o psiquiatra tornou-se um médico como os outros: usa avental, gravata, pede exames complementares e tem um grande arsenal de medicamentos à sua disposição. Este novo estereótipo povoa o imaginário de toda esta geração, facilitando um clima pouco propício para a reflexão.

PA: Como o senhor vê os psiquiatras hoje? DR: O rumo tomado pela Psiquiatria foi extremamente decepcionante para mim, pois sempre a vi como uma área especial dentro da Medicina, para pessoas com vocação intelectual, além da médica. Contra todas as minhas expectativas, o clima atual é de um cientificismo ingênuo e de um anti-intelectualismo militante.