/A Escola Lacan: Questões à Pedagogia – Sinopse da Conferência Jorge Forbes

III Colóquio do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação FEUSP/IPLA – “As figuras do bem e do mal e a educação”.

27 de agosto de 2005

Coordenação Leny Mrech

Conferência Plenária de Encerramento

Jorge Forbes 

A Escola Lacan: Questões à Pedagogia

Jorge Forbes realizou a conferência plenária de encerramento do III Colóquio do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação – FEUSP/IPLA. Ele tratou o tema “As figuras do bem e do mal e a educação” através de três formas de conjugar amor e saber: à maneira de Ataulfo Alves, à maneira de Caetano Veloso e, finalmente, à maneira de Jacques Lacan.

Formas de Conjugar Amor e Saber 

A maneira de Ataulfo Alves, expressa na canção “Amélia”, espelha o maniqueísmo do bem, Amélia; do mal, a outra mulher. Ataulfo canta as qualidades da Amélia, que já não está a seu lado, para a mulher com quem está. Ele ama a mulher a quem fala, pelas vias da negativa freudiana – a referência é o texto de Freud de 1925, Die Verneinung. Seu amor atual, marcado pelos mecanismos do recalque edípico, faz elogiar, para a amada, a Amélia ausente.

A maneira de Caetano Veloso, trabalhada na canção “Meu bem, meu mal”, é da coexistência dos dois aspectos numa só pessoa. Caetano atribui os dois juízos à mulher para quem canta. A linguagem o permite.

A cisão entre bem e mal está na linguagem e não corresponde de maneira direta a uma verdade das coisas. Por isso, Ataulfo, que tenta manter a cisão, a mulher boa e a má, é sujeito do inconsciente freudiano: está sujeito a amar a mulher que ele degrada, sujeito a não desejar mais a Amélia “que era mulher de verdade”. Caetano supera essa organização dividida para incorporar o dualismo do discurso, e cantar juntos o bem e o mal.

Uma terceira maneira de amar, porém, ainda é possível. É, finalmente, a maneira de Jacques Lacan, apresentada por Jorge Forbes a partir da frase “Amo em ti mais do que tu”. Ela rompe qualitativamente com as formas de Ataulfo e de Caetano, por privilegiar o real sobre o imaginário e o simbólico; o bem e o mal.

Amar “em ti mais do que tu” – referência à aula de conclusão do Seminário 11 de Lacan* – é amar além do que se pode dizer, amar além do “tu”, objeto da linguagem, além do bem e do mal.

Jorge Forbes associou um tipo de escola e de professor a cada um dos três modelos trabalhados – tradicional, a Ataulfo; moderno, a Caetano; e, enfim, real, a Lacan.

Formas de Ensino

A “escola Ataulfo” é tradicional e, com um professor padrão, constitui uma ordem edípica para o ensino. O professor apresenta-se como o representante do pai na escola, e trabalha com as cisões entre o bom e o mau comportamento, o bom e o mau aluno. É uma escola que encontra a imagem do bem na clareza do saber, com sua inspiração iluminista, e repugna o seu contrário.

Esta escola está com problemas hoje, quando um colóquio intitulado “As figuras do bem e do mal e a educação” já pode questionar abertamente o maniqueísmo no ensino, diz Jorge Forbes.

As últimas décadas operaram um tormento no saber. Está difícil, no mundo atual, manter o iluminismo no altar erguido por Auguste Comte, quando um rato – o mouse – leva as pessoas a correrem diversos caminhos de informação, expondo contradições, deixando o saber à disposição com um clique. A profusão de saber, hoje, desorganiza a ordem edípica e multiplica as vias a seguir. O homem está desbussolado. Já não é fácil forjar a linha entre bem e mal.

Uma tendência atual, em resposta a esse tormento do saber, é o reacionarismo pedagógico: tentar recuperar a ordem escolar passada, reforçando a moral através da figura de autoridade do professor. Essa tentativa deve falhar porque a estrutura que a embasava está em xeque.

A “escola Caetano” aparece como sua alternativa. É uma escola moderna – ou “nova” – em que o professor procura ser companheiro, camarada. Seu princípio é o de que cada um contribui com seu próprio saber. Democraticamente, o saber de ninguém vale mais que o do outro. Todos têm em si bem e mal. Nas aulas, há uma política do “vamos ver juntos”, que equilibra professores e alunos.

Essa é também a escola da interdisciplinaridade, que responde ao poder do pai afirmando que só a soma dos múltiplos saberezinhos compõe um saberzão. Nessa escola, no entanto, permanece uma teleologia do “sabermos mais”.

Por isso, Jorge Forbes fala em uma terceira forma de ensino e de escola, real, à Jacques Lacan. Nessa escola, não há mais a crença no saber ‘bem entendido’. Uma incompreensão de fundo é pressuposta. Sendo assim, o professor já não pode ser padrão, nem camarada. Ele é solidário – no sentido dito por Hans-Georg Gadamer – de quem consegue articular, no saber, o ponto de solidão.

A solidariedade, usualmente, é pensada na forma “coronelista” do “sou solidário a você”, diz Jorge Forbes. Assim, ela serve ao professor padrão, aquele que prende, solta, ou negocia. Mas pode ser pensada também na camaradagem do professor que vai ao barzinho com os alunos, da professora chamada de “tia”, de quem tem compaixão.

A solidariedade como articulação mútua da solidão, porém, é outra, e interessa mais ao mundo atual, assim como a escola “real”, pensada a partir de Lacan.

Isto porque, no mundo atual, não temos mais padrões fixos de compreensão que façam uma versão do Um – um uni-verso. O mundo global tende ao múltiplo – apesar do que tenta George W. Bush.

Hoje, o laço social se organiza sem formas maiores de compreensão mútua. As pessoas conseguem estar juntas sem a ordem de uma significação única – sobre isso, Jorge Forbes desenvolveu estudos da música eletrônica **.

Sua proposta é que o professor solidário seja pensado como o amigo solidário.

A Amizade Solidária 

Talvez possamos pensar em três tipos de amizade, diz Jorge Forbes. Do amigo com quem dividimos um prazer, do amigo com quem dividimos uma vantagem ou um trabalho (a mais desacreditada das amizades) e, enfim, a do amigo íntimo que nós não sabemos porque está conosco, não sabemos porque faz parte da nossa casa. O amigo solidário.

Essa é uma amizade marcada pelo “estranho” de que falou Freud (na tradução castelhana, “sinistro”), Das Unheimliche*** – o íntimo que surpreende. Assim é esse amigo que ao mesmo tempo fascina e aterroriza. Alguém que nos faz lidar conosco mesmos, uma pessoa que a razão não é suficiente para explicar a preferência.

Esse amigo é, em certo sentido, para nós, nós mesmos. Ela nos confronta com nosso Dasein – termo da filosofia alemã usado para falar do “ser no mundo”, do ser em relação com as coisas, que Lacan aplicou ao dizer que, na psicanálise, uma pessoa “come o seu Dasein”. Esse é o amigo na solidão da incompreensão até de si mesmo.

Qualquer uma das outras formas de amizade recupera, inevitavelmente, o dualismo entre o bem e o mal, porque tenta atribuir às coisas os valores que existem na linguagem.

Só a amizade solidária deixa o objeto estar além do entendimento e da linguagem, no “mais que tu” dito por Lacan, como um “estranho” freudiano, sustentando a arbitrariedade do signo lingüístico.

Nos anos 50 e 60, Lacan comentava os trabalhos do lingüista Ferdinand de Saussure especialmente por essa sua proposição da “arbitrariedade do signo lingüístico”. Ela quer dizer que não existe linguagem natural – se existisse, não haveria diferentes termos, em diferentes idiomas, para denominar uma mesma coisa.

A arbitrariedade do signo lingüístico nos leva a viver no mal-entendido, disse Lacan. Mas, ao contrário do que se pode imaginar – Jorge Forbes enfatiza – o mal-entendido é criativo, porque ele nos envolve todo o tempo na inesgotável tentativa do bom entendimento.

Um Ensino da Conseqüência de Si 

Entre os três modelos de ensino traçados, a escola em que há solidariedade do professor é a única que escapa ao saber progressivo e, assim, ao maniqueísmo do bem e do mal.

Ela rompe com os dois modelos anteriores porque admite a dominação do real como impossível de ser capturado. Como?

Se for esperado de cada pessoa, nesse ensino, diz Jorge Forbes, em primeiro lugar, encontrar sua singularidade marcada pelo mal-entendido, um estranho em si mesmo, e, em seguida, dar a essa singularidade sua conseqüência no laço social.

(Sinopse por Andréa Naccache)

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* “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, 1964.

** Como o texto “Geração Mutante: Palavra diz, palavra toca”, de 1999.

*** Escrito de 1919.

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