/Saúde pública sem metáfora

Debates franceses, desde a aprovação da lei regulamentadora das práticas psi

Que Alguma Liberdade Escape à Maestria

“Une démocratie digne de ce nom doit pouvoir tolérer qu’une telle liberté – de prática da psicanálise – échappe à sa maîtrise” – diz René Major ao Libération em 10 de abril, lastimando a aprovação do texto legal que submete as associações psicanalíticas francesas ao controle estatal de seus quadros.

Dois dias antes, o Parlamento francês aprovara a reforma na lei de saúde pública incitada pelo deputado Accoyer. Depois de mobilizar a comunidade psi ao debate intenso, o texto que regulamentaria a psicanálise, restringindo sua prática a médicos e psicólogos, passou com significativas modificações:

«L’usage du titre de psychothérapeute est réservé aux professionnels inscrits au registre national des psychothérapeutes. L’inscription est enregistrée sur une liste dressée par le représentant de l’Etat dans le département de leur résidence professionnelle. Sont dispensés de l’inscription les titulaires d’un diplôme de docteur en médecine, les psychologues titulaires d’un diplôme d’Etat et les psychanalystes régulièrement enregistrés dans les annuaires de leurs associations. Les modalités d’application du présent article sont fixées par décret.»

A especificidade da psicanálise foi preservada. Vitória de Jacques-Alain Miller, que promoveu a resistência ao projeto de lei inicial: « On a gagné la bataille essentielle avec le retrait de l’amendement Accoyer. Maintenant, quoi mettre à la place ? C’est un combat secondaire, d’autant que les vieilles lunes de la division des psychanalystes reprennent ».

O Dossier do Inserm, “Psychothérapie, trois approches évaluées” : Erro de Classificação, Erro de Critério, Erro de Quesitos.

Se, com a reforma legal, a sombra do Estado passa a cobrir a psicanálise na França, submetendo-a, por um lado, à forma institucional associativa, e, por outro, à inscrição estatal dos analistas, há mesmo motivos para lastimar. Ainda assim, a insubmissão à universidade foi um importante sucesso.

Talvez não houvesse mais chances de manutenção do silêncio legal sobre as práticas. O movimento pela regulamentação – dedicado ao expurgo do mal, localizado em sua pureza no “charlatanismo” – tinha adquirido força na forma de uma exigência de avaliação estatal dos praticantes.

O texto de lei aprovado implica, por isso, um alívio para os psicanalistas, em relação às considerações que vinham sendo feitas sobre a psicanálise.

Em 26 de fevereiro, saíra na França, a pedido do Ministério da Saúde, o Dossier do Inserm (Institut national de la santé et de la recherche médicale), que assumia a infeliz proposta de avaliar as “psicoterapias” em sua três “sub-classes”: cognitivo-comportamental; familiar ou de casais; e psicodinâmica (na qual se acreditou que a psicanálise estaria enquadrada).

Nove “especialistas” apuraram a eficácia dos tratamentos psi na remissão de alguns sintomas psiquiátricos, como esquizofrenia, transtornos ansiosos e do humor, alcoolismo, depressão, distúrbios alimentares. Resultado: os tratamentos psi foram mal na prova. Foi insatisfatória, especialmente, a linha psicodinâmica, que incluiria a psicanálise.

A pesquisa, que não pôde realizar-se em campo, foi baseada na “literatura especializada”.

Erro de classificação, erro de critério, erro de quesitos.

A psicanálise não é sub-classe da psicoterapia. Isso que o Parlamento francês pôde perceber no novo texto legal aprovado, os “experts” do Inserm não notaram em sua leitura dos “textos especializados”.

Tampouco a psicanálise é passível de medida pelo critério terapêutico da eficácia. A eficácia é aferida pelo Inserm com base em sinais psiquiátricos e um cronômetro. Como seria possível medir a psicanálise no encontro desse dois quesitos que não lhe servem?

São absolutamente secundárias à psicanálise as duas balizas usadas pelo Inserm: a classificação de sintomas psiquiátrica é estrangeira à clínica analítica; o tempo cronológico não a orienta.

O Que Não Se Vê

O Inserm apoiou toda a sua pesquisa na qualidade de uma visão que se reflete em números; na audição treinada, que discerne as dissonâncias da insanidade; no tato objetivo de um corpo humano mais afeito às pílulas que às palavras.

Claro que toda essa acuidade dos sentidos só chegou ao dossier do Inserm por intermédio de literatura, mas, deixada à parte a ironia dos métodos, a “avaliação” do Inserm ecoa a pretensão de ler-se o pensamento e o sentimento humano na tomografia; de localizarem-se idéias na ressonância magnética do cérebro.

Dão-se as mãos os “experts” avaliadores de psicoterapia do Estado francês e os psiquiatras do encontro “Imagerie e psychiatrie”, realizado em Essonne, na França, em 29 e 30 de março de 2004. Acreditam juntos que o ser humano funcione de maneira perfeitamente legível em números, que os cálculos sobre quem somos e nossa posição no mundo devem fechar, exatos.

Em 13 de abril, o Le Monde reporta as conclusões do encontro, já no título do artigo: « L’imagerie cérébrale permet d’examiner les maladies psychiques », e afirma : “certains spécialistes estiment que nous sommes à l’aube d’une révolution dans la compréhension des processus de l’activité mentale anormale et de la pratique psychiatrique ».

A psiquiatria laboratorial, com sua tecnologia de imagens, e o Inserm, atento à evidência do sintoma, celebram o tratamento psi restrito ao “que os olhos vêem”. Será o bastante?

“Ver O Cérebro Pensar É Uma Metáfora Poética”

No mesmo 13 de abril, o Le Monde entrevistou o psiquiatra Edouard Zafirian, professor no centro hospitalar universitário em Caen, sobre a tecnologia de leitura do cérebro, para apresentar a posição contrária. Para ele, como para a psicanálise, “o que os olhos vêem” não é tudo:
“Ne nous trompons pas. La recherche en neuro-imagerie est scientifique mais ses interprétations, ses conclusions ou ses affirmations sont scientistes. “Voir le cerveau penser” n’est qu’une métaphore poétique. On ne “voit” d’ailleurs rien d’autre que des listes de chiffres qui sortent des machines – par exemple avec la caméra à positons – et que l’on transpose de manière conventionnelle avec des codes de couleur pour représenter la silhouette d’un cerveau. On met ainsi en évidence que, pour penser, il faut un cerveau dont certaines zones sont activées de manière sélective.

Quand bien même on isolerait certaines zones cérébrales activées plus spécifiquement au cours de pensées tristes ou gaies, cela ne renseignerait en rien sur les causes ou le contenu de ces pensées. Encore moins sur la valeur symbolique qu’elles peuvent avoir pour la personne qui les produit. Seule la parole du sujet qui s’exprime permet d’avoir accès au contenu de sa pensée ».

Não se pode esquecer a palavra, como parte do que é humano, e Zafirian não ignora as conseqüências disso. Se a psicanálise não cabe nos critérios do Inserm, ele bem poderia responder porque: o sofrimento psíquico não se reduz aos sintomas universais. Diz « La suppression du seul symptôme (par le médicament, par exemple) ne suffit pas à soulager durablement la souffrance psychique ». Para além da biologia, mensurável – admite ele – a subjetividade requer a palavra.

Referências:

Libération, « L’amendement Accoyer adopté amendé : Le texte de loi encadrant les psychothérapies laisse les professionnels réservés et divisés », por Eric Favereau, 10 de abril de 2004.

Dossier de l’Inserm, ” Psychothérapie, trois approches évaluées : Une Expertise Collective de l’Inserm ». 26 de fevereiro de 2004.

Le Monde, “Voir le cerveau penser n’est qu’une métaphore poétique”, entrevista de Edouard Zafirian, por Jean-Yves Nau, 13 de abril de 2004.

Le Monde, « L’imagerie cérébrale permet d’examiner les maladies psychiques”, reportagem de Jean-Yves Nau, 13 de abril de 2004.

por Andréa Naccache