/Impressões sobre as quatro conferências com Alain Grosrichard, por Jaci Palma

Impressões sobre as quatro conferências com Alain Grosrichard – um primor de curso

 

Abertura das atividades do Corpo de Formação do ano de 2010 – O que se segue é um compilado de minhas anotações.

Vou tentar falar a língua da assistência. Sempre difícil falar síntese quando a questão é a análise. (Alain Grosrichard na abertura de sua 2a Conferência.)

                              

                1a Conferência – 05.03.2010.

Em O Seminário, livro 17, O Avesso da Psicanálise, Lacan, ao se referir aos seus ouvintes, utilizou a palavra assistance. Que quer dizer tanto platéia ou público, quanto prestar ajuda

Em sua dupla acepção, assistance serve para implicar de maneira ativa a audiência. Faz da platéia um dos elementos da estrutura do discurso.

Muitos dos ouvintes de Lacan lhe diziam: não estou entendendo nada. Grosrichard diz que, diante disso, existem duas possibilidades, ou jogamos fora o que nos afetou, ou se faz alguma outra coisa com isto.

Nos propõe então que nos deixemos levar por seu modo de gozar a leitura de Lacan. Dizendo que sua intenção é de injetá-la com fragmentos significantes. Não no sentido de compreender, mas no de fazer ondas.

Em 1749 Diderot escreveu a Carta sobre os cegos para o uso dos que vêem. No texto, há um cego verdadeiro, um monstro que nasceu sem olhos. Sua existência faz uma objeção viva ao Deus ordenador do universo e expõe um furo na ordem da natureza.

Acreditamos ver Deus na natureza, o que é uma projeção imaginária. Tapamos os buracos de nosso saber com ela. O que um verdadeiro cego pode fazer é nos tirar dessa ilusão para que nos confrontemos com o real.

Jean Jacques Rousseau, certo dia, folheando um pequeno jornal, um boletim literário, chamado Mercure de France, se depara com uma questão. Será que o desenvolvimento das artes, das técnicas, corrompeu os costumes? Neste momento ficou deslumbrado, teve uma revelação.

Grosrichard insiste nesta palavra. Pois, na psicanálise há o encontro com a verdade num lapso, ou numa revelação. Rousseau percebe então que o desenvolvimento das ciências e das artes só faz aumentar nossa servidão dando-nos a ilusão de liberdade. Funcionam como guirlandas recobrindo as correntes que nos amarram.

Egéria é uma ninfa, uma deusa, com a qual o fundador da legislação romana, Numa, sucessor de Rômulo, se consultava em segredo, e que lhe havia fortemente inspirado. Para Lacan, em Analyticom, ela é uma cadela, um quadrúpede, que representa os 4 discursos, que ele chamou de minhas coisas com 4 patas.

 

                2a Conferência – 06.03.2010

A filosofia é aquilo em que repousa o Discurso da Universidade, que procura educar, e esta ambição, Lacan a trata como sendo uma imbecilidade básica, de sonho, que tem como função obturar toda relação com o real.

Praticar a anti-filosofia – proposta por Lacan em Talvez Vincennes, em Outros Escritos – é despertar desse sonho. Do qual só há um despertar, particular. E cabe a cada um encontrar o seu.

Jacques, o fatalista diz: … tudo que nos acontece de bom aqui em baixo está escrito lá em cima. Grosrichard avalia que esta é uma determinação inconsciente em relação à busca do gozo perdido. A repetição da busca do objeto que permitiria a satisfação absoluta, do objeto a, que esconde uma perda fundamental. E é isto que faz com que o movimento do desejo seja sem fim.

Não existe um gozo plenamente satisfatório para o homem. Por isso, não há relação sexual. Mas o amor supre sua ausência. O que faz com que acreditemos nela mesmo assim. Daí as cartas intermináveis onde se diz te amo, te amo, te amo…

               

                3a Conferência –  06.03.2010

No início do poema de Rimbaud, Le dormeur du val, logo no primeiro verso, destaca-se o significante furo ou buraco (trou). O trou que, num primeiro momento, remete à uma situação bucólica e acolhedora, toma um significado completamente diferente ao final, tornando-se fúnebre.

O soneto ilustra bastante bem que há alguma coisa que age retroativamente sobre o conjunto da cadeia significante, produzindo uma significação totalmente nova. O buraco como significando morte já estava lá. No entanto, só aparece com esta conotação, de maneira visível e marcante, ao final do soneto.

Lacan mostra neste seminário, o XVII, o que ele chama de impostura filosófica do cogito cartesiano. Percebe a existência de uma identidade entre o eu penso e o eu sou. Mas, quando se diz Eu, Eu não remete à nenhuma substância. Lacan reformula o cogito de Descartes dizendo lá onde penso não sou, lá onde sou não penso.

Chama-o, o cogito, de Eucracia, de Ditadura do Eu. E é este justamente o Discurso da Filosofia, que não admite que Isso pensa, mesmo que Eu não pense. Existe um saber inconsciente que escapa ao domínio do Eu.

Sade representa um ponto de virada na história da Ética, fazendo transparecer o tema da felicidade no mal. Lacan obrigou Kant a revelar a verdade do Imperativo Categórico através do Marquês. O que escandalizou os filósofos. Mas o que interessa é que Sade é um grande elaborador do que se poderia chamar de economia do gozo.

Este tema diz respeito ao conjunto do pensamento iluminista. Que quer emancipar-se da infâmia que faz com que obedeçamos ao mestre, e tenta fugir deste discurso dizendo: sapere aude, ouse saber. É o que faz a psicanálise, à sua maneira. Quer saber daquilo de que o sujeito não quer nada saber.

Sade pratica este enunciado fielmente e, ao mesmo tempo, subversivamente. Para ele o saber se inscreve no sentido de saborear, de experimentar algo que não se conhece para descobrir o efeito que produz. Aqui, o sapere aude assume a forma de ouse experimentar.

 

             4a Conferência – 07.03.2010.

O Discurso Universitário faz dos estudantes Unidades de Valor, transformando-os em Créditos. Que são comparáveis ao que foi descrito por Marx como mais-valia. A força de trabalho, do proletário, é uma mercadoria como qualquer outra. E pode ser vendida ao capitalista. Este, no entanto, vai fazer aquele trabalhar a mais, e não vai pagar por isso. Assim, da mesma forma que o Discurso do Mestre explora o escravo para roubar seu saber, o Discurso Universitário rouba o a-studante, transformando-o em Créditos.

O Discurso do Capitalista encontra-se associado ao Discurso da Ciência Moderna. Utilizado pelo mestre capitalista para produzir novos objetos/gadgets, chamados por Lacan de Latusas, que são substitutos evanescentes, cujo interesse para o desejo some na hora mesmo em que são comprados. Porque tem que se desejar o que ainda não existe. Tem que se tê-los, mas a partir do momento em que se os têm, não é mais isto.

Rousseau perdeu a mãe logo ao nascer. Achava que devia ter morrido de vergonha imediatamente. Foi criado por M.me Lambercier e a amava maternalmente. Até o dia em que ela o castigou. A partir daí, desejou que a situação se repetisse. Aqui há a descoberta de um novo gozo e a vontade de que o castigo ocorresse novamente, o que corresponde ao traço unário que engendra a repetição.

Nessa busca incessante, em que ele deseja ser novamente castigado, acaba se expondo a situações esdrúxulas. E, no momento mesmo em que a situação de gozo vai de fato se concretizar, ele não suporta e foge. Até que se mete em uma enrascada.

É perseguido por um grupo de camponesas para as quais havia exibido o traseiro. É pego e se vê obrigado a se identificar e a mostrar o rosto. Nesse momento ele acaba construindo um fantasma que o salva. No auge da vergonha, quando o homem com o sabre lhe inquiria: Qual seu nome? O que você faz aqui? Disse-lhe que se compadecesse de sua situação. Inventou que era rico e que lhe recompensaria, mais tarde, se lhe deixasse fugir. Rousseau cria um romance familiar, o primeiro de Jean Jacques, que se originou da vergonha. Ele quer repetir o momento do gozo, que se encontra justamente onde está a vergonha.

Rousseau ousa falar de sua vergonha, como se as Confissões fossem uma metáfora ampliada de seu traseiro. Essa confissão é a exposição dele mesmo para ser açoitado, exibe aí um orgulho extraordinário. Em vez de ter vergonha da vergonha ele dela extrai a glória. Minha vergonha sou eu mesmo, em minha singularidade absoluta. Intus et in cute, dentro de mim e na pele.

 

                                                                                               Jaci Palma Júnior.

                                                                                              São Paulo, 09.03.2010.

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