/A comédia (des)humana e a fábrica americana

Dorothee Rüdiger

Há um mal-estar no ar. Ao menos é essa a sensação, de quem assiste American Factory, documentário dotado com o prêmio Oscar 2020. Foi dirigido por Steven Bognar e Julia Reichert que acompanharam durante dez anos a vida de trabalhadores e managers de uma fábrica chinesa instalada em Dayton/Ohio depois do fechamento dos estabelecimentos da General Motors naquela cidade. O filme volta à memória durante a leitura de La comédie (in)humaine  publicado pelos franceses Nicolas Bouzou e Julia de Funès em 2018. Entre o filme e o livro há um tema comum. Não é a crise econômica que assola a economia mundial nesse início do século XXI, mas, sim, a maneira como as pessoa convivem, hoje, nos lugares onde trabalham.

À primeira vista, filme e livro não parecem tratar dos mesmos problemas. O livro narra as dificuldades das lideranças nas empresas francesas de se adaptar ao século XXI, no qual, aparentemente, se exige criatividade e  autonomia dos trabalhadores. O filme, por seu turno, relata a chegada de uma fábrica de vidros chinesa nos Estados Unidos e do impacto da cultura de trabalho chinesa sobre os operários  norte-americanos. No entanto, ambos, o filme e ao menos os primeiros dois capítulos do livro, convidam para uma reflexão sobre os laços socias contemporâneos no trabalho e denunciados pelos autores e diretores como sendo literalmente  insustentáveis.

Sabe-se que os Estados Unidos não são exatamente uma imensa Disneylândia. Os americanos passaram por uma crise econômica e financeira que, entre os anos 2008 e 2009, levou regiões inteiras a serem desindustrializadas, os trabalhadores ao desemprego e, como denuncia o documentário, suas famílias à pobreza. O fechamento da fábrica da General Motors em Dayton abriu uma oportunidade para uma fábrica chinesa de vidros para carros investir na antiga planta industrial da fábrica de automóveis.

Os chineses vão aos Estados Unidos e implantam junto com a fábrica seu próprio estilo de gestão. Não permitem a presença do sindicato no estabelecimento, uma tradicional prática trabalhista americana, reservam os postos de liderança técnica a engenheiros chineses pretendendo transformar operários americanos em bravos “heróis do trabalho”. Trata-se da realização de um sonho comunista chinês na maior economia capitalista do mundo? O close de câmera nos olhos do manager americano, quando este observa fascinado a obediência cega dos operários numa das fábricas na China, diz tudo.

O brilho nos olhos do manager denuncia o estilo de gestão burocrática, autoritária e degradante que os autores franceses descrevem em seu livro publicado na França em 2018. Esse estilo de gestão é, no século XXI, paradoxal. Exige autonomia e criatividade por parte dos trabalhadores e dispensa o exercício do poder a favor de uma liderança baseada na autoridade técnica, mas contrasta com uma realidade de um management que burocratiza, ridiculariza e infantiliza  os laços sociais nos estabelecimentos. Os exemplos dados pelos autores, das brincadeiras aos eventos esportivos, são de empresas francesas. No entanto, como documenta American Factory, poderiam acontecer também nos Estados Unidos ou na China, onde uma  festinha de confraternização com direito a ridículas  dancinhas  dos gerentes gringos fazem parte do cardápio da gestão de recursos humanos.

Como denunciam os autores do livro, ao invés da empresas centrarem esforços na realização de projetos e em objetivos que possam  ser um convite à criatividade dos trabalhadores, mantem-se hierarquias, regras e diretrizes que fazem dos empregados robôs. As pessoas funcionam como máquinas substituíveis por robôs de verdade. As lideranças, assim a tese dos autores, estão despreparadas, não por último, porque a posição de líder é galgada por progresso na carreira e não pelo talento do gestor de estar à frente de equipes com projetos em comum.

Por que isso? Os autores desconfiam de que em toda parte se gasta mais tempo de olho na complexidade do mercado do que na complexidade das relações humanas no trabalho. Tal atitude é um tiro no pé para o empreendimento. A burocracia transforma empresas em máquinas pesadas que produzem mais burocracia, reuniões infindáveis e doenças como o burn out, o bore out e o brown out.

Para os autores, focar a resposta ao problema da má gestão no mercado global é um engano que cometem principalmente os economistas marxistas. O paradoxo entre a exigência de criatividade e autonomia no trabalho e o estilo autoritário de suas lideranças seria, de acordo com os marxistas,  devido ao funcionamento do capitalismo globalizado. Haveria a pressão global para maximizar lucros que resultaria num estilo de gestão predatório. Nessa perspectiva, a exigência de “bater metas” seria devida à lógica da concorrência global e do investimento direto dos bancos nas empresas (o que se chama de “financeirização”). Assim, a pressão dos bancos para obter retorno lucrativo para seus investidores seria responsável pelo autoritarismo existente nas empresas.

É curioso, que as cenas retratadas no filme American Factory  sustentam a tese de Bouzou e de Funès. A questão do estilo de gestão é uma questão da cultura da empresa antes de ser uma questão da pressão de mercado. Estabelecimentos  comunitários, sem fins lucrativos e públicos sofrem do estilo burocrático de gestão, enquanto,  ao menos na França, grandes empresas capitalista são capazes de lidarem bem com a criatividade de seus funcionários. Os autores do livro  criticam os marxistas por não levarem em conta as transformações e contradições nas relações humanas no trabalho, enquanto analisam o sistema capitalista como imensa máquina que produz lucro e crises.

Onde a psicanálise pode entrar nesse debate? Jacques Lacan chama de “gozo” o que Joseph Schumpeter chama de “destruição criativa”. Destruímos e criamos incessantemente cultura, valores e sentidos. Para a psicanálise a criatividade humana aflora, quando alguém seriamente se submete a uma análise. Hierarquias, na visão psicanalítica, são superegóicas, paralisantes e contraproducentes. Reforçam neuroses obsessivas com suas regras e exigência de obediência. Por outro lado, provocam a revolta dos histéricos. O que fazer? Quem experimenta o divã adquire, livrando-se aos poucos do superego, criatividade e responsabilidade.

Daria para mudar a cultura de trabalho de uma empresa? Resta a curiosidade para sabermos mais nos próximos capítulos do livro. Quanto ao filme resta o incômodo de se saber quais são as chances de se sobreviver no mundo do trabalho, enquanto os robôs façam sua parte repetitiva, entediante e insalubre.

 

 

São Paulo, 3 de março de 2020