/Da Repetição Idiota à Repetição Criativa

Autores: Gabriela Viana, Jullianne Chenut, Lauro Gisto Xavier, Luis Rodrigo Gonsalves, Rebecca Barreto, Regina Politi, Renato Chiavassa, Teresa Genesini. Tutora: Claudia Riolfi. Sombra: Alain Mouzat

Trabalho do Corpo de Formação em Psicanálise do IPLA 2009 – Freud e Lacan na clínica de 2009 – módulo II: O quê repete? – junho de 2009.

Por meio da análise do filme O Feitiço do Tempo (1), visamos a mostrar que a repetição é um fenômeno que se altera quando o sujeito passa a poder lidar com a surpresa. Mostraremos que, no filme, uma passagem da repetição idiota à repetição criativa ocorre quando o sujeito se dá conta de que o essencial da experiência humana não é passível de ser apreendido por meio do simbólico. Destacaremos, por meio do personagem principal, a passagem de uma posicão irresponsável (de quem diz tal coisa me aconteceu) para a posição de decisão e implicação nos diferentes aspectos da vida. Dessa forma, nosso foco estará concentrado nas possibilidades que o personagem inventa, dada a repetição a que está submetido.

Para maior clareza, iniciaremos com a sinopse do filme. A história se inicia quando o repórter Phil Connors é escalado para produzir uma matéria a respeito do Dia da Marmota. Trata-se de uma festa tradicional, realizada numa cidade do interior, onde se acredita que a marmota é capaz de prever o tempo de duração do inverno. Phil é uma pessoa cínica, que se confere o status de estrela e que, além disso, trata os outros com enorme desdém. Uma grande nevasca acaba obrigando-o a pernoitar na cidade. O drama começa quando, na manhã seguinte, toca o despertador: a data não mudou, todos os dias são, de novo, o famigerado Dia da marmota. Phil ficou preso no dia mais odiável de sua vida, em um dois de fevereiro perpétuo.

E se não houver amanhã? Pois não houve um hoje…, diz Phill Connors a certa altura do filme. Fez-nos lembrar de Nietszche (2003), quando propõe a idéia de um demônio que sopra as seguintes palavras: Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência…. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” O que será que o personagem Phil vai fazer após ter sido visitado por demônio semelhante?

Para construir esta resposta, recorremos a Freud (1920). Sabe-se que ele se viu obrigado a rever sua definição de repetição quando, após a primeira guerra mundial, tratou neuroses traumáticas. Colocou em questão o princípio do prazer, tido como responsável pela repressão de lembranças que poderiam causar o desprazer, como por exemplo, a lembrança de uma insatisfação, que poderia ser altamente desprazerosa. Tal desprazer também poderia se constituir na percepção de um prazer como se fosse um perigo. Então, por que, nos casos de neurose traumática, as lembranças dos traumas de guerra continuam a voltar, por exemplo, no sonho? Se o sonho é a realização de um desejo, como o analisando pode desejar o próprio sofrimento? Então, para Freud, na mente existe uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio do prazer. Esta compulsão teria um caráter pulsional, voltado a restaurar um estado anterior de coisas. Ela seria uma expressão da inércia inerente à vida orgânica, de sua natureza conservadora. Trata-se da descoberta da pulsão de morte.

Ao realizar uma leitura da elaboração freudiana, Lacan (1964) empresta de Aristóteles os termos Autômaton e Tiquê para construir uma elaboração mais precisa a respeito da natureza da pulsão de morte. Ele fez uma analogia da rede de significantes (simbólico) com o Autômaton e do encontro com o real com Tiquê. Assim, podemos definir a repetição como sendo a articulação interna e indissociável entre Autômaton e Tiquê para o sujeito falante.
Neste ponto da reflexão, resta-nos perguntar se existe um único tipo de repetição. Partindo de Lacan, Forbes (1999) diferencia a psicoterapia da psicanálise por meio da distinção entre a repetição do velho e a repetição do novo. Para ele, é possível repetir na idiotice ou repetir na novidade. Ele frisa que são duas formas de repetição, só que uma é idiota e a outra é criativa. O objetivo de uma análise seria levar a pessoa a poder cantar sua vida numa nova razão. Como isso pode se dar na vida de uma pessoa?

Voltemos, então, ao filme, na intenção de mostrar como Phil lida com a repetição. No início da trama, o personagem é caracterizado como um obsessivo praticamente caricato. O roteiro ressalta sua tentativa de controle e sua incapacidade de lidar com a surpresa. Com o desenrolar da história, ele oscila entre amaldiçoar a repetição ou transformá-la em algo divino, utilizando-a para gerar dias dignos de serem vividos outra vez. No fim do filme, digamos que Phil finalmente se reinventa.

Antes de poder se reinventar, no entanto, sua repetição é idiota. Ela lhe serve bem ao propósito da obtenção de gozo na justa medida em que, por conhecer o padrão da repetição, pode prever e controlar suas ações. Phil encontra na repetição idiota a possibilidade de escapar às consequências dos seus atos – até mesmo de se matar – e de suas palavras. Ele promete casamento, insulta ou degrada as pessoas e, depois, tudo continua como se nada tivesse sido dito. Não se dá conta que acaba sendo vítima das consequências. Em vez de protagonista de sua vida, torna-se vítima dos seus atos. Phil sonha reviver um dia que imaginariamente elegeu como satisfatório, no qual transou como um leão marinho, comeu e bebeu como um rei, ficou ao por do sol… Entretanto, tudo o que se repete são os rateios em sua vida…

Sua transformação ocorre quando a angústia passa a surgir. Ela advém da exata impossibilidade de fugir às consequências, da impossibilidade de repetir mesmo aquilo que é bom, da automação que ele se impõe na tentativa de controlar. No seu mais radical encontro com o real – a morte de um personagem que ele não pode evitar – ele sente que não há maneira de controlar e manejar de forma perfeita a vida. Só então pode experimentar a repetição criativa. A sua própria morte, jamais concretizada no filme, embora tentada de inúmeras maneiras, lhe causa a sensação de não mais existir. Sua tentativa de lidar com a angústia é essa mesma de desaparecer, eliminar de forma radical sua responsabilidade de alterar o curso de sua vida que não seja pela desistência.

Phil vai encontrar uma saída na magia. Diz Agamben (2007), retomando a enigmática definição de Kafka sobre a magia: se chamarmos a vida com nome justo, ela vem, porque ‘esta é a essencia da magia que não cria, mas chama. Phil busca, na invenção, em novos conhecimentos, na arte, formas de reinventar seus dias. Passa a perceber a possibilidade de surpresa e encontro e, então, permite ser modificado por seus encontros. Para nós, Phil vive seu instante descomunal quando diz à mulher que ama: — Não importa o que aconteça amanhã, ou pelo resto da minha vida, estou feliz agora.

Phil vai poder quebrar sua sina no uso da criatividade e da arte. Por meio desta expressão criativa ele pode viver o amor, tal qual descrito por Lacan (op.cit:267), a saber: O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de assujeitar-se a ele. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque fora dos limites da lei, somente onde ele pode viver.

Concluímos o trabalho afirmando que as seguintes palavras de Forbes (2008) poderiam ser aplicadas ao caso de Phil: Está com os dias contados o exibicionismo do objeto de luxo para mostrar poder e exclusividade, a questão não é mais de impressionar o outro, mas de, como um artista, fazer sua opção subjetiva, e incluí-la no mundo. É aí que, em vez de repetir o mesmo, se dá a paradoxal repetição da diferença.


(1) Trata-se do filme “Groundhog dog”, direção de Harold Ramis, EUA, 1993.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEM, Giorgio Magia e felicidade. In: Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. Pp. 23 – 26.

FORBES, Jorge. (1996). Repetir na idiotice ou repetir na novidade. In: Da palavra ao gesto do analista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. Pp. 94-109. Estranhos desejos. In: Revista Isto É Platinum 09. São Paulo: EditoraTrês, outubro/ novembro, 2008. P. 130.

FREUD, Sigmund (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.

LACAN, Jacques (1964). O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1998.

NIETSZCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Editora Martin Claret, 2003.