/Famílias, amo vocês: política e vida privada na era da globalização – de Luc Ferry

 

por Ariel Bogochvol

        O título do livro de L. Ferry é um contraponto à frase de A. Gide em Frutos da Terra: Famílias! Como as odeio! Casas fechadas; portas trancadas; apropriação mesquinha da felicidade. Mais de um século separa os dois livros. Entre a declaração de ódio e a de amor, há não apenas uma exposição de diferenças subjetivas, mas a passagem de um tempo que afetou a sociedade, a família e a vida privada de forma profunda.[1] Contestada, rejeitada, declarada funesta ao desabrochar do desejo e da liberdade sexual[2], acusada de guardiã de uma felicidade mesquinha, a família tornou-se o ideal e o objeto de desejo até daqueles que dela foram proscritos e que jamais sonharam constituí-la.

             Não se conhece praticamente nenhuma sociedade em que a família elementar (nuclear) não tenha desempenhado papel importante. Como união mais ou menos duradoura e socialmente aprovada de um homem, de uma mulher e seus filhos, a família é um fenômeno universal, presente em todos os tipos de sociedade. [3] Supõe uma aliança e uma filiação, e repousa em uma estrutura que, aparentemente, é natural (diferença sexual) e simbólica (a proibição do incesto). A existência destas duas ordens, às quais se mistura uma multiplicidade de diferenças ligadas aos costumes, à religião, às condições históricas e geográficas, está na fonte de uma formidável riqueza das formas de organização familiar. [4]

            Algumas configurações contemporâneas não seguem o figurino clássico: monoparental, homoparental, gerada artificialmente, com mães e pais de ‘aluguel’, com filhos de pais ou mães diferentes, apresentam-se variações, variedades. Reivindicam, na atualidade, o direto de se constituírem  nos mesmos moldes que as famílias tradicionais.[5] Luta-se, em vários países, pelo direito dos homossexuais se casarem oficialmente e pelo reconhecimento dos filhos gerados neste contexto. Ao contrário do que se temia, a ‘desordem da família’ contemporânea não resultou em sua dissolução mas em um “familiarismo redescoberto”[6]. Os excluídos da norma, outrora críticos, agora a reivindicam.

            Famílias, amo vocês – Política e vida privada na era da globalização de Luc Ferry foi publicado em 2007. Filósofo francês nascido em 1951, um dos principais defensores de um ‘humanismo secular’ [7] ‘transcendental’ [8], publicou vários livros e artigos, foi ministro da Educação de 2002 a 2004 no governo de J-P Raffarin, durante a presidência de Jacques Chirac, e colabora, como conselheiro, do governo Sarkozy. Intelectual com atividades políticas associadas à centro-direita francesa, apesar de crítico de alguns de seus pressupostos, L. Ferry pretende, com seu livro, participar do “nascimento de um novo humanismo fundado na sagração da família moderna e da intimidade.” [9] Foi discutido no Projeto Análise dirigido por Jorge Forbes como parte de uma ampla investigação sobre os efeitos da globalização nos laços sociais.[10]  Quais os efeitos da globalização sobre a família? Sobre a intimidade? Quais são as configurações familiares contemporâneas? Em que diferem das passadas? A família é eterna? O amor à/da/em/pela família é um amor como outro qualquer?[11]

            Para L. Ferry, “a família moderna e o casamento por amor representam uma revolução do espírito, uma mutação lenta e silenciosa que marca, como nenhuma outra, nossas existências e muda radicalmente a problemática clássica do sentido da ‘vida boa’.” [12] Ideal e regra das sociedades contemporâneas, teriam “alterado todo o jogo, revolucionado a vida das pessoas e mudado o sentido do sagrado.”[13] Encarnado até então em entidades extraordinárias – Deus, Estado, Nação, Revolução – o sagrado desceu do céu para a terra, se encarnou na própria humanidade. Se Deus está morto, o que veio em seu lugar não foi o homem-Deus, carregado de perigos totalitários, mas Deus-no-homem, encarnado na vida íntima. A verdadeira meta da existência, aquilo que lhe daria um sentido, sabor e valor, e pela qual estaríamos dispostos a nos sacrificar – sagrado é aquilo em nome do qual vale a pena se sacrificar; “sagrado” e “sacrifício” tem a mesma origem – se situaria basicamente na vida privada.[14]         

                L. Ferry apresenta as profundas transformações que marcaram “um século de desconstrução” – era do “crepúsculo dos ídolos”, do “fim dos grandes objetivos”, da “desapropriação democrática”, das “grandezas e misérias da globalização capitalista” – e suas incidências sobre a família e a vida privada. Tenta desvendar seu sentido especulando que o sagrado, longe de desaparecer na grande desconstrução, teria encontrado novos lugares de emergência. A “transcendência teria se encarnado na imanência”, na família e na vida íntima. Em seu texto, a dimensão histórica e a sagrada se interpenetram; a história é o lugar de manifestação do sagrado e o sagrado tem uma história, se transforma, aparece em novas versões, despido de sua face divina mas divinizando a existência. Toma, como referência, uma noção de “transcendência não dissipada pelo declínio das religiões.”[15]

            L. Ferry apóia-se em três palavras que servem como organizadores de seu livro, cuja explicitação e análise formam sua trama – desconstrução, desapropriação e sacralização[16], discutidas detalhadamente nos três primeiros capítulos. O prefácio introduz uma quarta palavra, o medo. O quarto capítulo tenta responder à pergunta O que fazer? Como plano geral, o livro parte da constatação do “medo generalizado” associado à “desconstrução” e à “desapropriação”, mostra como a “família e a vida íntima” tornaram-se a referência fundamental de um mundo sem referências e conclui com a formulação de propostas políticas que levariam em consideração o novo lugar assumido pela família, pela vida íntima e pelo sagrado, novas formas de tratar o “medo generalizado”.

            O medo é, simultaneamente, o pano de fundo do livro, o terreno onde se assenta toda a construção, seu leitmotiv e o estado afetivo que o autor procura sanar em si e no mundo. Seu texto é uma tentativa de cura e de tratamento do mal estar na civilização. “Comecemos por uma constatação banal e generalizada: o medo se tornou uma das paixões dominantes das sociedades democráticas. Na verdade temos medo de tudo: da velocidade, do álcool, do tabaco, (…) dos organismos geneticamente modificados, do efeito estufa, do frango, das micro-ondas, (…) do presidente americano, da extrema direita, da globalização (…) Assistimos a uma verdadeira proliferação da angústia.” [17]

            Há um medo natural vinculado ao alargamento de horizontes, reação frente ao desconhecido representado pela globalização. O fato inédito é que ocorreu uma “desculpabilização” do medo, tornado uma paixão positiva, prudente, sábia. [18]Até há pouco, considerado como algo negativo (‘o medo é mau conselheiro’, conforme a sabedoria popular) de que as pessoas deveriam se envergonhar, procurando superá-lo, o “medo ganhou uma função heurística”[19], tornou-se uma forma de conhecimento. Graças ao medo, teríamos consciência das ameaças que pairam sobre o mundo, o que nos forçaria a agir responsavelmente. Mas também, graças a ele são gerados sentimentos de impotência, imobilidade e paralisia que nos assombram. De onde vem este medo onipresente e como se livrar dele, pergunta L. Ferry?

            Associa o medo generalizado ao processo de desconstrução que, durante o século XX, corroeu feito um ácido os valores e referências sobre os quais se assentava nossa civilização. Século das vanguardas, “seu principal mote foi o de desconstruir os enquadramentos tradicionais dos valores burgueses, da estética, do racionalismo clássico. Vontade de acabar com a tonalidade na música, a perspectiva na pintura, a coerência da narrativa e a psicologia dos personagens nos romances, mas igualmente a invenção da vida boêmia e das filosofias da desconfiança de Marx, Nietzsche e Freud.”[20] Tudo isto concorreu para a queda, quebra e desarticulação dos ideais metafísicos, éticos, religiosos, políticos e para o surgimento do “homem desbussolado”[21], “sem lenço e sem documento”[22], sem referências, perdido em suas escolhas, com vertigem de sua liberdade.

            A desconstrução acompanhou e libertou dois fenômenos inéditos: a desapropriação democrática que a globalização impôs e o advento de uma vida privada que promoveu uma nova forma do sagrado. A reboque de um gigantesco paradoxo, as vanguardas, ao se contraporem aos ideais burgueses, de fato prepararam o advento da globalização liberal. A globalização precisava da destruição dos valores transcendentes, que freavam seu movimento, para desabrochar. Precisava liquidar as antigas figuras transcendentes de sentido para que tudo se tornasse fluido, líquido, imanente às exigências do mercado e do consumo. [23] Na “civilização do desejo”[24], consumir mais e mais de tudo tornou-se um imperativo análogo a um vício, a uma adição.

            A democracia, um dos alicerces da civilização ocidental, que implicaria, por definição, na participação de cidadãos conscientes e responsáveis, é praticada por cidadãos alienados, desapropriados, amedrontados, que são representados por políticos incapazes e governados por um estado impotente. Nesta maquinaria, o homem percebe-se como destituído do controle de sua vida e de sua história, bombardeado por exigências que não consegue responder, ávido e insatisfeito, em um estado de infelicidade paradoxal. Nos planos político, econômico, social, moral, sente-se  desamparado, órfão, à mercê de forças que ele não domina e sem contar com outras forças para apoiá-lo

            Libertando, por outro lado, dimensões até então ausentes – o sexo, os afetos, o irracional, o incoerente, o desejo – a desconstrução promoveu o culto do íntimo e da intimidade. Novas figuras da transcendência começaram a se reconstituir em outros terrenos. As múltiplas facetas da desconstrução acabaram por emancipar as forças da vida privada, produzindo uma nova localização do sagrado. A fuga de sentido se deteve às portas das casas. Em um movimento dialético, a sagração da intimidade, terceiro capítulo do livro, representa a ‘negação da negação’ apresentada nos dois primeiros. Da desconstrução promovida pelo séc XX, que derrubou todos os deuses, e da globalização liberal que desapropriou os homens de si mesmos, emergiu uma nova forma do sagrado, encarnado não na verticalidade dos grandes ideais, mas na horizontalidade da família e da vida privada.

            Para os historiadores das mentalidades, o único laço social que nos últimos dois séculos se aprofundou, intensificou e enriqueceu foi o que une as gerações no seio da família, mesmo que decomposta, situada fora do casamento ou recomposta. [25] Muitos fatores concorreram para esta virada: a revolução sexual, o novo papel da mulher, a livre escolha dos parceiros, a importância dada aos filhos. Para L. Ferry, “a vida amorosa ou afetiva, sob todas as suas formas, os laços que se criam com os filhos no decorrer da educação, a escolha de uma atividade profissional, a relação com a felicidade mas também com a doença, o sofrimento e a morte, ocupam um lugar infinitamente mais eminente que a consideração de utopias políticas.”[26]

            O crescimento dos valores da intimidade, que caracteriza nossas sociedades democráticas, não deveria ser interpretado como um “recolhimento individualista”, uma “regressão neoliberal”, uma renúncia aos “afazeres do mundo”, mas como a possibilidade paradoxal de um formidável alargamento do horizonte [27] Uma verdadeira “revolução do espírito” que precisaria ser acompanhada por uma mudança na política, nos modos de pensá-la e praticá-la. Seria necessário inverter o ideal de “liberdade dos Antigos” – a participação ativa nos negócios públicos – para o ideal de “liberdade dos modernos” – o direito de cada um viver sua vida privada da forma como achar melhor. [28]

            O quarto capítulo O que fazer? procura estabelecer as bases de uma ação política a partir da idéia de que “a história da vida privada reinventou o coletivo.”[29]  A importância adquirida pela vida privada “deslocou as razões de Estado.”[30] É uma “revolução silenciosa que obriga a repensar os programas políticos”[31]e que funda um “novo humanismo.”[32] Como a política pode levar em conta a revolução do espírito? Como pode privilegiar a esfera privada se, por definição, refere-se à polis, a esfera pública? Como colocá-la a serviço da vida privada sem desconsiderar as grandes questões coletivas? L. Ferry apresenta algumas idéias gerais e poucas propostas de ações políticas: combate à desigualdade, convívio com as diferenças, criação de creches e asilos para a proteção daqueles que se situam nas extremidades da vida, fortalecimento da república e da democracia, pagamento das dívidas dos países europeus. Entre suas premissas filosóficas, suas constatações sociológicas/históricas e suas aplicações no plano político há, evidentemente, um fosso.

            Para L. Ferry, diante da revolução da vida privada que está em marcha, a melhor atitude deveria ser a do otimismo, sem chorar a morte das utopias, sem nostalgia, dando-se ao luxo de amar o mundo que começa mais do que o mundo que termina.[33] Sob a influência da globalização houve a emancipação dos indivíduos com relação aos comunitarismos tradicionais. É esta emancipação que a história da família moderna confirma com a invenção da vida privada, que ela ao mesmo tempo representa e consagra. É por ela que o “humanismo pós moderno, pós-desconstrutor, teria acesso à sua conceituação e exigiria, pela primeira vez na história, um sistema político finalmente a serviço dos indivíduos.”[34] Seu sonho: uma república, laica, reinscrita no futuro, no pós-século de desconstrução e emancipação.[35] Para além do medo, L. Ferry faz uma aposta nas invenções do presente e do futuro.[36]

 


 

[1]     Lacan, J – Os Complexos familiares, pg 33 – Outros Escritos – Rio de jaqneiro: Jorge Zahar Ed. 2003

[2]     Roudinesco, E. – A família em desordem, pgs. 9-10 – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed 2003

[3]     C. Levi-Strauss – La famille -citado por E. Roudinesco, pg 13 em A família em desordem

[4]     Roudinesco,E. – A família em desordem, pg17

[5]     “A ver o fracasso das utopias comunitárias, a posição de Lacan nos lembra a dimensão do que se segue. A função de resíduo exercida ( e ao mesmo tempo mantida) pela família conjugal destaca a irredutibilidade de uma transmissão (…) que é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo.” J. Lacan em Nota sobre a criança – Outros Escritos, pg 369

[6]     Roudinesco, E. A família…pg 9

[7]     É apresentado desta forma na contracapa do livro Família, amo vocês

[8]     Define-se desta forma no primeiro capítulo do livro A sabedoria dos modernos, pg 15, escrito conjuntamente com  A.. C. Sponville –  São Paulo: Martins Fontes, 1999

[9]     Ferry, L. – Famílias, amos vocês – sumário

[10]    Projeto Análise www.projetoanalise.com.br

[11]    Forbes, J. – Família e responsabilidade – www.projetoanalise.com.br 

[12]    Ferry, L. – Famílias… ,pgs. 19 e 20

[13]    idem pg 20

[14]    idem pg 23

[15]    Sponville, A C e Ferry, L.  – A sabedoria dos modernos, pg 15 – São Paulo: Martins Fonte, 1999

[16]    Ferry, L – Famílias…pg 13

[17]    Idem pg 9

[18]    Idem pg 13

[19]    Jonas, H.- Princípio Responsabilidade -Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006

[20]    Ferry,L. – Famílias…pg 25

[21]    Forbes, J. – Psicanálise do homem desbussolado – www.projetoanalise.com.br

[22]    Veloso, C. – Alegria, alegria

[23]    Ferry, L –  Famílias…,pg 27

[24]    Lipovetsky, G. – A felicidade paradoxal – São Paulo: Companhia das Letras,2007, pg 11

[25]    Ferry, L. – Famílias…pg 74

[26]    idem   pg 23

[27]    Ídem, pg 19

[28]    Ídem,pg 23

[29]    Ídem pg 103

[30]    Ídem, pg105

[31]    Ídem, pg 113

[32]    Ídem pg 110

[33]    Ídem, pg 141

[34]    Ídem, pg 136

[35]    Idem pg 141

[36]    Forbes, J., Lipovetski,G.,Ferraz, T.S.; Reale Jr.,M – A invenção do futuro – Barueri: Manole 2005

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