/O que os psicanalistas pensam do fim de uma análise hoje?

 

Claudia RIOLFI

 

Os membros do Instituto Sephora de Pesquisa em Psicanálise de Orientação Lacaniana – ISEPOL (Rio) e do Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA (São Paulo) se reuniram no II Samparioca para refletir a respeito do que se pode esperar do final de análise na clínica do Real.

Em um debate acalorado, ocorrido no sábado, 18 de setembro de 2010, no Golden Tulip Continental Hotel, no Rio de Janeiro, cerca de sessenta pessoas tomaram os finais de análise e suas provas como temática e passaram o dia todo tentando construir uma inteligência coletiva para responder como, hoje, este final se configura e como se pode verificá-lo.

Por que é necessário debater este tema?

Antes do evento, os participantes receberam uma coletânea de textos para preparar sua reflexão. Nela, foram incluídas contribuições clássicas e contemporâneas.

a)      Os textos clássicos: Uma pesquisa a respeito de como Lacan tratava o tema nos textos reunidos no volume Outros Escritos foi feita por Rosa Guedes Lopes. Rosa deu especial atenção ao texto Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. Por meio de recortes do texto, relembrou-nos que, no escopo de uma teorização ligada à noção de sujeito como efeito do significante, Lacan considerava o relato a respeito do fim da análise como uma oportunidade para o acúmulo de saber. Relembrou-nos, ainda, que seu interesse incidia sobre o que uma pessoa tem de saber quando a destituição subjetiva ocorre. Por último, retomou que foi neste momento da elaboração que o passe — um dispositivo, no qual o candidato fala de sua análise para se fazer autorizar como analista da Escola (AE) — foi formulado.

b)      As contribuições contemporâneas: Uma tradução (feita por Flávia Lana Garcia de Oliveira e revisada por Tania Coelho dos Santos) de uma transcrição de uma intervenção oral de Jacques-Alain Miller fez parte do conjunto de textos enviados aos participantes. Trata-se do trabalho “Haveria Passe?”, que o psicanalista francês pronunciou em janeiro de 2010, intitulada A coisa julgada, em Paris. Pelo próprio título deste trabalho, pode-se notar que, com a mudança do paradigma clínico, da primeira para a segunda clínica, uma interrogação a respeito deste dispositivo se impôs sobre a comunidade analítica internacional. Trata-se da verificação de uma verdadeira competência ou de uma performance? — questionou Miller.

c)      Em São Paulo, no IPLA, também  circularam coletâneas de textos de Jorge Forbes a respeito do tema, preparadas por Elza de Macedo e por  Liége Lise.

Assim, por meio da leitura do material preparatório, os participantes puderam notar que, de 1967 a 2010, ocorreu uma mudança sensível com relação ao modo da comunidade analítica entender o passe. Em maior ou menor medida, este foi o mote dos trabalhos discutidos ao longo do dia.

Quais foram as contribuições iniciais?

Convocando os psicanalistas para refletir conjuntamente, Tania Coelho dos Santos provocou: O que se produz como efeito de uma análise, passa ao real? O que faz um analista no mundo? Qual a eficácia da psicanálise e como se pode dar provas disso? Nove colegas responderam seu chamamento e apresentaram os seguintes trabalhos:

  1. Cynthia de Paoli (RJ): Quais são os critérios no dispositivo do passe? Ponderando que o modo como o passe vem sendo realizado pode conter um risco de favorecer a criação de parcerias perversas e/ou alianças, Paoli argumentou a favor de critérios mais claros para a aprovação dos candidatos que se submetem ao dispositivo do passe.
  2. Dorothee Susanne Rüdiger (SP): Sobre a arte de comover: o passe como processo. Partindo de um comentário a respeito da assembléia dos aristocratas de Ítaca, que foi narrada por Homero, na Odisséia, Rüdiger mostrou que os elementos comuns nos processos (a demanda, as partes, o rito processual e a decisão) estão presentes no passe. Argumentou a favor de que, no passe, sejam dadas provas que ressoem em quem escuta.
  3. Elza de Macedo (SP): Pierre Rey com Jacques Lacan. A partir da retomada do texto Uma temporada com Lacan, de Pierre Rey, Macedo defendeu que a passagem de analisante para analista mantém como essencial a demanda de, sem excluir o real, amar o inconsciente. Para além do passe como dispositivo formal, Elza argumentou a favor da pluralização das provas de final de análise a serem dadas.
  4. Lúcia Helena C. dos Santos Cunha (RJ): Concepções de final de análise: o passe. Interrogando-se a respeito da pertinência de considerar o passe como um rito de passagem necessário à iniciação do analista, Cunha faz um apanhado histórico das diferentes concepções de Lacan a respeito do final de análise até a sua proposta de passe, em 1967. Defendeu, portanto, a necessidade de repensarmos a respeito do que é o final de análise hoje.
  5. Douglas Nunes Abreu (RJ): Não sou um poeta, mas um poema. E que se escreve, apesar de ter jeito de ser sujeito. Partindo do reconhecimento de que a passagem a analista é marcada pela diversidade de maneiras de testemunhar uma relação singular com o real, Abreu interrogou-se a respeito da existência de um ponto de convergência entre os analistas que pudesse justificar uma Escola. Douglas apostou, portanto, na possibilidade de decantar, da singularidade da experiência de cada qual, semelhanças que as tornariam passíveis de serem transmitidas.
  6. Ricardo Gomes Sabino (RJ): Alguma coisa acontece no meu coração… Partindo de uma contribuição de Miller (1995), Sabino defendeu que uma Escola pode ser um refúgio para os psicanalistas que levaram suas análises ao ponto de perceberem a inexistência do Outro a quem dirigir a demanda de ser livrado de seu mal estar. Para ele, o passe seria o momento de solicitar a verificação do esgotamento desta demanda.
  7. Valéria Wanda da Silva Fonseca (RJ): De que trata uma análise na contemporaneidade? Mostrando sua perplexidade em face aos possíveis impactos que as mudanças sociais podem ter sobre as análises, Fonseca interrogou-se a respeito dos possíveis benefícios sobre elas que poderiam ser gerados por analistas que pudessem atuar em prol de um retorno ao campo simbólico.
  8. Maria Helena Barbosa (SP): Estou bem, graças a Deus! O efeito de elaboração da mudança. Por meio de um caso clínico de um homem com diagnóstico de distrofia de Steinert, encaminhado para atendimento psicanalítico com diagnóstico de depressão, o foco de Barbosa foram os efeitos sobre as análises e seus efeitos da elaboração que é feita pelos pacientes a respeito do princípio ativo de uma psicanálise.
  9. Teresa Genesini (SP): O céu pode esperar, a vida urge. Também por meio do comentário de outro caso clínico (analogamente de um homem com diagnóstico de distrofia de Steinert, encaminhado para atendimento psicanalítico com diagnóstico de depressão), Genesini especulou a respeito do ponto até onde uma análise precisa ser levada para que o efeito de encontro com a felicidade possa ser mantido.

 Os pontos de ancoragem durante a discussão

 A discussão se desenrolou em torno da tentativa de responder cinco grandes questões, a saber:

  1. Existe um ou muitos finais de análise? Após um período no qual defendia a pluralidade das modalidades diferentes dos finais de análise que é decorrente do fato da psicanálise não trabalhar com padrões, Jorge Forbes defendeu uma tese segundo a qual se falarmos hoje de  “um” final de análise, assim poderia ser dito: estabelecer-se na poíésis, ou seja, assumir o risco de colocar no mundo algo de seu após ter desistido de ser compreendido pelo Outro. Trata-se de se separar de sua condição anterior de amor e suportar a angústia de, a cada vez, dar a ver uma obra que, por própria, necessariamente não vai corresponder às expectativas sociais. Aí, dois aspectos são essenciais: Invenção e Responsabilidade.
  2. É ou não necessário dar provas públicas a respeito do final de análise? A tentativa de responder esta questão foi precedida pelo debate em torno do que é “dar provas”. Houve consenso a respeito de que o que precisa ser “provado” é que quem terminou uma análise pôde inventar uma singularidade e encontrar meio de passá-la no mundo.
  3. Qual é a natureza das provas a serem dadas? Para responder esta questão, debateu-se a necessidade de refletir a respeito de como compreendemos o que uma “singularidade” é. Para quem compreende que ela é pré-existente, fruto de uma história individual, as provas a serem dadas são necessariamente de ordem testemunhal. Para quem compreende que a singularidade de alguém se encontra em suas obras, não haveria necessidade de uma banca que a legitimasse para que ela fosse reconhecida pela comunidade em geral. Parte dos participantes concordou a respeito da inutilidade da banca para que a obra possa ser vista mesmo quando se desconhece o processo que lhe deu origem.
  4. É ou não necessária uma instância institucional para avaliar o término de uma análise? Mesmo sem fechar questão a favor da necessidade da existência do passe, Tania Coelho dos Santos declarou-se a favor da existência de dispositivos que facilitem a decantação e a comunicação do que pode ser extraído de uma análise. Ariel Bogochvol defendeu que o passe pode ser uma boa solução para aqueles que desejem partilhar sua experiência analítica. Para além disso, não houve consenso na construção de uma resposta coletiva para esta questão.
  5. Como avaliar a eficácia clínica da psicanálise? Ponderou-se a respeito da distância que existe entre o vivido e o relatado. Sem que tivesse havido um consenso, discutiu-se, ainda, a respeito da necessidade (ou não) do paciente saber bem-dizer a respeito da psicanálise à qual foi submetido para que ela continue a fazer efeito no decorrer do tempo.

Ancoragens finais

A comunidade analítica parecia saber falar do fim de uma análise quando o padrão era a separação do sujeito com o gozo. Não parece tão à vontade agora, em tempos nos quais o padrão aponta para a inexistência desta separação. Como julgar se uma identificação ao sinthoma de fato se deu?

Na esteira da discussão a respeito da necessidade de repensar o passe, que Jorge Forbes tem empreendido desde a década de 90, concluímos pela necessidade de reinventar a teorização a respeito de como uma análise termina. Sua questão ainda está para ser respondida: “Como será o julgamento de um Cartel do Passe sobre um relato do estabelecimento de uma felicidade, ou, de um novo amor? Temos aí uma estrada a um novo horizonte”.

Se, na primeira clínica, o foco era o saber e, na segunda, é a verdade mentirosa, há que se pensar de modo diferente a respeito da possibilidade de verificação de uma análise que foi levada ao seu fim. Impõe-se, portanto, uma convocação ao trabalho: uma elaboração que permita melhor cernir como a passagem de analisante para analista pode ser provada coletivamente, em acordo com a Clínica do Real.

Referências Bibliográficas

FORBES, Jorge. (2001). Quais são os novos horizontes das políticas de admissão da Escola? Disponível em: http://www.jorgeforbes.com.br/print.php?id=133

HOMERO. Odisséia. Trad. Odorico Mendes; org. Antônio Medina Rodrigues, pref. Haroldo de Campos. São Paulo: Ars Poetica / EDUSP, 2000.

LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 248-264, 2003.

MILLER, Jacques-Alain. A lógica na direção da cura. Belo Horizonte: Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise, 1995.

REY, Pierre. Uma temporada com Lacan. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.